O fantasma da tese de Malthus – a dissonância entre o aumento da população e o da produção de alimentos – foi exorcizado pela produtividade moderna, ou pode sê-lo onde a fome persiste, se complementada pela capacidade institucional, interna e internacional (OMC, FAO). Há bolsões de fome trágica, a exemplo do Sudão, mas a desnutrição ainda manifestada mundo afora resulta mais da falta de renda para adquirir o alimento que da produção insuficiente. Em contrapartida, preocupa a nova versão do fantasma malthusiano: a distância entre, de um lado, demandas essenciais à vida digna de 7 bilhões de seres humanos e crescendo (193 milhões no Brasil), como são emprego e renda, educação, atendimento à saúde, energia, transporte, habitação, água potável, saneamento, seguridade social, e por aí vai, a que se somam as demandas do modelo consumista e lascivo (o uso do carro…), e, do outro, a capacidade do Estado, da sociedade e da natureza (ameaça ambiental, exaustão de recursos naturais) de satisfazê-las. O tema é global, mas vamos desenvolvê-lo referenciado ao Brasil.
Até os anos 1970 o aumento populacional do Brasil era apoiado na ideia, avalizada pela doutrina da segurança nacional da época, que associava progresso e segurança de país extenso à população grande (difícil explicar Canadá e Austrália…) e via a população grande como mercado naturalmente também grande. Essa ideia vem sendo revista e já é consensual que população grande, pobre e mal preparada compromete o progresso em tranquilidade, o meio ambiente, a segurança e a qualidade da democracia. Não acompanhado pelo desenvolvimento com dimensão social, diferente do mero crescimento econômico, o aumento da população é socialmente aviltante, culturalmente mediocrizante e ambientalmente predatório. Haja vista a favelização desordenada, que cria preconceitos prejudiciais à solidariedade social, degrada o meio ambiente e induz a convivência conformada com o delito.
Nossa população aumentou de 30 milhões em 1920 (o Canadá hoje) para 193 milhões em 2011. Nesse período, nosso PIB cresceu a ponto de ser o sexto do mundo. A produção agropecuária acompanhou e ajudou a propulsar o crescimento econômico e demográfico (menos fome, mais saúde), mas a satisfação do imenso rol das demais demandas essenciais do povo, ou nele inculcadas pela sedução da modernidade, não ocorreu em ritmo similar – descompasso transparente no nosso modesto ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), no mundo. Muitas dezenas de milhões de brasileiros vivem hoje prejudicados pela educação medíocre, pelo caótico atendimento à saúde e pelo apoio social e infraestrutural precário, na ilusão da ascensão social via consumo em ene prestações. Ou sobrevivem na informalidade, no subemprego e assistencialismo, que envilecem a dignidade cidadã. Atraídos pelo fascínio do consumismo, mas não compelidos pela fome, muitos milhares praticam o delito como meio de vida.
É bem verdade que o poder público não foi competente na busca da compatibilização da evolução econômica com a social. De qualquer forma, teria sido difícil construir infraestrutura de apoio, instituições de ensino e de saúde e moradias decentes, organizar um modelo socioeconômico com empregos dignos e uma seguridade social eficiente e correta, para quase cinco Argentinas atuais em 90 anos, uma Argentina a cada 22 anos! O ritmo de crescimento da população vem caindo há 40 anos e se aproxima do (ou já é) razoável – o que exigirá (já exige na Europa) a revisão da previdência, que responda ao problema “envelhecimento das gerações da época prolífera versus inserção ativa de menos jovens”. Mas se aproxima do razoável com distorções interativas que complicam a redução do déficit: a base da pirâmide social o reduz mais lentamente que os estratos superiores e o Sul e o Sudeste relativamente ricos, mais rapidamente que as regiões onde a dívida social é maior. Quadro similar ao do mundo, como mostra a diferença entre a natalidade europeia e a africana.
A versão século 21 do fantasma malthusiano está longe de resolvida. Sua solução implica o complexo e demorado atendimento das demandas essenciais esboçadas acima e a revisão do imaginário que, a despeito das limitações, inclusive da natureza, pretende a população idilicamente motorizada e equipada com a miríade de utensílios de última geração, travestidos de necessários – iPads, notebooks, smartphones, videogames, TVs de alta definição, celulares, micro-ondas… -, turistando pelo ar ou em cruzeiros marítimos. Imaginário crescente na metade inferior da pirâmide social, cuja tradição conformista vem sendo aluída pela pressão da lógica do modelo em que a oferta cria a necessidade e a pretensão aos padrões dos estratos superiores. Estes, egoisticamente insensíveis ao fato de que a solução depende também do comedimento em seus padrões hedonistas instigadores de inquietante frustração de bilhões – da classe média (ou “oficialmente” assim interpretada no Brasil…) insatisfeita aos despossuídos.
A continuar o cenário atual de distanciamento (em algumas regiões, aumentando) entre a realidade e o desejado (o de fato justo e o incutido na aspiração popular), no correr deste século a ordem global será tumultuada pela intranquilidade social e política. Tendência já sintomática, por exemplo, na inversão da migração: ao tempo da ameaça original de Malthus, de europeus pobres para os espaços da esperança. Sob a pressão da versão século 21 da ameaça, a migração inversa, de asiáticos (decrescente com o desenvolvimento regional), africanos e latino-americanos para o suposto nirvana europeu e norte-americano, que, além de estar vivendo uma sucessão de crises, já é refratário à imigração, vista como carga social, competidora no mercado de trabalho e fonte de violência e delito.
Em suma, um desafio neomalthusiano para estadistas, no mundo e no Brasil.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 29/12/2011
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