Estes tempos de quarentena têm permitido, entre uma sessão de lavagem de pratos e outra, tirar o atraso na minha lista de leituras. Estou curtindo, em particular, o “Economia do Bem Comum”, de Jean Tirole, Nobel de Economia em 2014 (Ed. Zahar, 2020).
Tirole o escreveu para os não-economistas: sem fórmulas e (quase) sem gráficos, o livro explica o que faz o economista, em especial na academia e no desenho das políticas públicas, com ênfase nos avanços trazidos pela Economia Comportamental e as Teorias dos Jogos e da Informação. O livro traz também pontes entre a economia e disciplinas como a filosofia, a sociologia e o direito que, como lembra Tirole, trabalham com o mesmo objeto: o ser humano.
Estes dias li uma seção sobre a manipulação de crenças. A Economia Comportamental enfatiza a influência das crenças sobre o nosso comportamento, notando que essas em parte explicam as opções dos agentes econômicos. Tirole discute em especial o conceito da automanipulação – “os indivíduos quase sempre buscam reprimir/esquecer ou reinterpretar as informações que lhes são desfavoráveis” -, um tema que, segundo Tirole, remonta aos escritos de Platão, que considerava isso algo ruim para o indivíduo.
Tirole lista três possíveis razões para o indivíduo mentir para si mesmo: gerar confiança para enfrentar desafios; esquecer coisas negativas que podem ocorrer, como a morte; e aumentar a autoestima, se sentindo mais ‘inteligentes, bonitos, generosos etc”. Soa familiar, mas será que faz sentido? Afinal de contas, para a economia essa atitude é irracional: informações incompletas ou distorcidas em tese levam a piores decisões.
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As redes sociais fortaleceram essa capacidade de automanipulação, na medida em que facilitam a interação com pessoas (e robôs) que compartilham nossas visões, gerando um contexto de grupo que nos dá maior conforto quanto à razoabilidade e correção de nossas crenças. Vejo isso todo dia nos grupos de WhatsApp e Twitter. Mesmo a interação com quem pensa diferente é sempre cheia de raiva e desprezo, que não abre as mentes, mas apenas confirma quão corretos estamos.
Isso, obviamente, não passou despercebido às empresas e aos políticos. Estes, em especial, sempre trabalharam com as crenças dos eleitores, mas mais recentemente passaram a fazêlo no contexto das redes sociais. Assim, em vez de prometer obras ou apoio a grupos de interesse, trabalham agora na criação de narrativas que combinam com, ou mesmo criam, crenças que depois são fortalecidas nas redes. E depois prometem se comportar de acordo com essas crenças se eleitos.
É com esse pensamento que tenho acompanhado o processo assustador, mas também fascinante, com que atores chave da cena global estão brigando para “viralizar” suas narrativas sobre as crises da saúde e da economia. Afinal de contas, de onde veio originalmente a covid-19? Ela é perigosa ou só uma gripe diferente? É melhor #FiqueEmCasa ou cuide da economia? Só os idosos precisam se cuidar ou o risco existe para todos? Que país de fato reagiu melhor ao coronavírus? Do ponto de vista de narrativa, quem ainda não o fez, deveria assistir ao vídeo sobre Milão, na região hoje mais afetada pela covid-19 na Itália (bit.ly/3aEwJ71).
Uma disputa semelhante está em curso sobre como a política econômica deve reagir à inevitável recessão, global e no Brasil, com forte alta do desemprego e o fechamento de inúmeras empresas. Afinal de contas, o governo está fazendo pouco ou o suficiente? Devem os juros vir para zero? Deve o governo pagar todos os salários ou só dos trabalhadores de baixa renda? Essa discussão está só começando e irá avançar quando iniciar o debate sobre por fim à quarentena, possivelmente no início de junho.
São variadas as dimensões das narrativas que disputam se tornar verdades. Uma disputa que não dá sinais de ver um fim a curto prazo. E, ainda que a maioria dessas narrativas seja dirigida ao público doméstico, de olho nas eleições, também está em jogo qual entrará para a história sobre o que foi a crise da covid-19.
Como lidar com isso? Em teoria, cada um de nós deveria obter o máximo de informações objetivas e processá-las de forma racional. Mas o ser humano nem sempre age dessa forma e, no quadro atual, com fortes emoções e atores políticos buscando manipular nossas crenças, comportar-se racionalmente tem sido difícil.
Nesse contexto, sinto falta de um esforço do governo, e da sociedade, para criar uma narrativa de maior união e cooperação em meio a uma crise que ceifará a vida de milhares de brasileiros, além de levar muitas empresas e famílias à falência. É uma oportunidade de mudar as crenças em prol de unir o país para enfrentar os desafios ora colocados e para a difícil reconstrução, inclusive das contas públicas, que se fará necessária à frente.
Como disse Emanuel Rahm, “nunca permita que uma boa crise seja desperdiçada quando for uma oportunidade de fazer coisas que você nunca considerou ou que não pensou possíveis”. Esta é a maior crise desde a Segunda Guerra Mundial: seria um desperdício não aproveitá-la para colocar o Brasil em uma rota de progresso nas décadas que virão.
É isso, hora de fazer a cama e dar uma geral na casa. #FiquemEmCasa
Fonte: “Valor Econômico”, 3/4/2020