Crescimento da produtividade, tecnologias tropicais, competição em escala global, produtores motivados e migração interna explicam o indiscutível êxito do agronegócio brasileiro. Sem grandes esforços ou apoio de acordos internacionais de relevância para o setor, em menos de 20 anos quintuplicamos as nossas exportações nesse setor, atingindo US$ 102 bilhões para mais de 200 países.
Mas a moleza acabou. No passado, importadores vinham buscar nossas commodities nos portos brasileiros porque oferecíamos volumes crescentes a preços competitivos. Mas os próximos 20 anos não serão tão fáceis. A guerra hegemônica EUA-China vai ser longa e penosa para o mundo, podendo ajudar ou prejudicar o Brasil em função dos dois elefantes estarem brigando ou dançando.
Nesses tempos turbulentos, tudo indica que a demanda será dirigida pela geopolítica do “comércio administrado”, e não pelas vantagens comparativas à la David Ricardo. Ocorre que a demanda potencial do mundo é praticamente infinita, mas apenas uma pequena parte dela é acessível para as nossas exportações por conta de inúmeras barreiras tarifárias e não-tarifárias – técnicas, sanitárias, burocráticas, etc.
Em um momento que a geopolítica retorna com vigor, nosso primeiro desafio será construir demandas consistentes para nossos produtos. Temos de mapear nossos interesses de curto e longo prazo nas principais macrorregiões do mundo emergente. O holofote de hoje está no Leste e Sudeste da Ásia e no Oriente Médio, regiões que somam 2,6 bilhões de habitantes e 54% das exportações brasileiras no agro. Porém o nosso futuro está depositado no Sul da Ásia (leia-se o subcontinente indiano) e na África – na soma, 3 bilhões de habitantes em rápido crescimento demográfico, mas que hoje respondem por apenas 12% das nossas exportações.
Temos de aprender a lidar com a China, esse nosso casamento inevitável de longo prazo, que demanda um relacionamento estratégico e equilibrado que gere maior diversificação e valor adicionado no comércio. Os chineses já respondem por um terço das nossas exportações do agro, porém altamente concentradas na soja em grãos.
Ao mesmo tempo, com prudência e equidistância, temos de intensificar e dar um novo rumo para as relações com os Estados Unidos, perdidas após duas décadas de desconfianças mútuas. No agro, os EUA são nosso maior concorrente, mas também um dos importadores mais promissores e sofisticados do planeta (mais de US$ 180 bilhões em importações agro, crescendo cerca de 7% ao ano), ao lado da China (US$ 178 bilhões em importações, crescendo cerca de 12% ao ano) e da União Europeia, com crescimento de 4% ao ano. Mas para os EUA exportamos apenas US$ 7 bilhões no agronegócio, quatro vezes menos que a nossa exportação de soja em grão para a China. Há muito por fazer!
Finalmente temos de avançar com o projeto de abertura comercial brasileira, ao mesmo tempo que retomamos as negociações comerciais que ampliariam, mesmo que tardiamente, a nossa integração das cadeias de valor do planeta.
Nosso segundo grande desafio global decorre das ações e repercussões das nossas políticas em três grandes áreas do agro: Saúde, Sanidade e Sustentabilidade, que chamaremos de 3S. Os maiores problemas de saúde e nutrição são a combinação perversa da falta de alimentos (820 milhões passam fome no mundo) com a má nutrição – 2,1 bilhões de pessoas com obesidade e doenças crônicas. Na sanidade vemos a eclosão de graves doenças e o desafio da eficiência do sistema sanitário. Na sustentabilidade os temas mais importantes para o Brasil são uso da terra e de insumos, desmatamento, clima e biodiversidade.
Nas últimas semanas o mundo inteiro comenta as queimadas que estão ocorrendo na região amazônica. Queimadas ilegais nessa época seca do ano não são fato novo e decorrem basicamente de pobreza e da ilegalidade, numa região que abriga imensas florestas e 20 milhões de habitantes com baixa renda e pouco controle. Mas a percepção de quem lê o mundo por meio de redes sociais é que o Brasil perdeu o controle e o maior culpado seria a agricultura moderna, o que é falso. Décadas de esforço de redução de desmatamento, ganhos de produtividade e a vigência de uma das leis florestais mais rigorosas do mundo não impediram a rápida destruição de imagem que está ocorrendo neste momento, com riscos de afetar o comércio e as negociações internacionais do agro.
Ao mesmo tempo, o açúcar é atacado pelos seus danos potenciais à saúde, gerando uma discussão em escala global que propõe de rotulagens a taxações explícitas. A pecuária bovina é apontada entre as principais causadoras das mudanças climáticas, em função do uso da terra e da eructação dos ruminantes. Doenças como gripe aviária e peste suína africana afetaram vastas regiões do hemisfério oriental e da América do Norte, provocando queda de consumo. Críticas ao uso de defensivos, antibióticos e transgênicos tornaram-se lugar-comum nos países mais ricos.
Não cabe neste texto discutir o quanto de verdade, inverdade ou exagero existe em cada exemplo acima. Num mundo digital e profundamente interconectado, o país que ocupa a terceira posição entre os maiores exportadores agrícolas do planeta precisa gerenciar as percepções que se formam sobre a sua pauta exportadora, sejam elas verdadeiras ou não.
No tema da geopolítica dos alimentos é fundamental construir visões estratégicas de longo prazo com base em estudos detalhados e montar uma estrutura de negociação em cada frente relevante.
Quanto à percepção sobre os 3S (Saúde, Sanidade e Sustentabilidade) é necessário contar com bons dados, presença qualificada e uma sólida estratégia de representação e diálogo no exterior.
Mais de Marcos Sawaya Jank
Impactos e lições da peste suína na China
A epidemia chinesa de peste suína e o Brasil
Bolsonaro entre EUA, OCDE e China
Esses foram os principais fatores que motivaram a criação do Insper Agro Global, um centro que analisará temas complexos da agenda internacional do agronegócio desenvolvendo estudos estratégicos, debates qualificados, apoio no desenho de políticas e formação de pessoas.
Alguns dizem que o Brasil é o melhor produtor do planeta. Outros dizem que é o mais injustiçado, porque fez muito e pouca gente acredita. Certamente somos mais temidos do que admirados. Mas reputação não é o que achamos de nós mesmos, mas sim o que nossos parceiros e interlocutores pensam da gente, mesmo que altamente influenciados por mídias sociais.
Comparando com outros grandes exportadores, nossa maior falha não está nas políticas e ações de campo, mas sim na nossa incapacidade de se fazer presente no exterior, ouvindo, entendendo e dialogando com nossos clientes e consumidores nas diferentes regiões que atuamos.
O ponto de partida é uma melhor capacidade de coordenação do governo, setor privado, pesquisa e sociedade civil no Brasil. Se antes falávamos em oferta e produtividade, hoje é preciso pensar em demanda dirigida pela geopolítica e pelas múltiplas percepções dos nossos clientes, sejam elas verídicas ou não.
Fonte: “Valor Econômico”, 13/9/2019