Não faltam assassinatos por motivos políticos no Brasil democrático. Uma reportagem especial publicada há quase cinco anos pelo jornal “O Estado de S.Paulo” reuniu nada menos que 1.133 casos desde a Lei da Anistia, em 1979 – 56% deles no Nordeste. A média verificada num período de 34 anos era de um assassinato político a cada 11 dias.
Nenhum deles teve – ou poderia ter tido – o poder de comoção trazido pela execução fria, brutal e odiosa da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes na noite da última quarta-feira.
Uma conjunção perversa de características do crime, da vítima e do momento vivido pelo Rio de Janeiro fez da morte de Marielle um evento de repercussão explosiva. Houve manifestações no país inteiro em homenagem a ela, seu nome atingiu o ápice dos assuntos mais comentados no Twitter, Marielle se transformou num símbolo.
Criada na Favela da Maré, militante de causas negras, feministas e LGBT, quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro (pelo esquerdista PSOL), Marielle era contra a intervenção federal na Segurança Pública do estado e, recentemente, fora escolhida para integrar, como relatora, o grupo da Câmara municipal criado para monitorá-la.
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Mais que isso, Marielle usava as redes sociais para manifestar seu repúdio à ação da polícia carioca. Referia-se especificamente a um batalhão da Polícia Militar, responsável pelo policiamento de Acari, como “Batalhão da Morte”. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, tuitou na véspera de ser assassinada.
A perseguição a seu carro, seguida de disparos incessantes na direção dela – Marielle levou quatro tiros na cabeça; Anderson, pelo menos três nas costas; a assessora ao lado dela sobreviveu –, tem, de acordo com a polícia, todas as características de uma execução deliberada. Por enquanto, só há hipóteses a respeito da identidade dos assassinos. Entre elas, a vingança de milícias, obrigadas agora a disputar com o Exército o poder nas favelas cariocas.
O clima atual no Rio explica muito da reação popular. A tranquilidade aparente trazida pela intervenção foi incapaz de dissipar a tensão latente, evidente a qualquer um que chegue lá. Desci no aeroporto Santos Dumont na tarde da última terça-feira e, até voltar a São Paulo no início da noite de quarta, todas as conversas que mantive derivavam lá pelas tantas para a violência. De taxistas a empresários, de economistas a jornalistas, todos obcecados com o tema.
A sociedade carioca está desiludida e profundamente dividida a respeito da melhor saída. Depois do fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora e da débâcle que sucedeu Copa do Mundo e Olimpíada, a alta na criminalidade e os assassinatos com requintes de crueldade deixam na população um sentimento de desespero. A droga circula diante dos olhos de quem trafega à noite nos bairros mais nobres. É o terreno ideal para o florescimento das ideias radicais.
Não é um acaso que o deputado Jair Bolsonaro, pré-candidato do PSL à Presidência, tenha conquistado tanta popularidade com sua visão linha-dura do combate à violência. No polo antípoda, o PSOL, partido de Marielle, teme qualquer tipo de ação mais enérgica como uma afronta dirigida contra a população pobre e negra das favelas. Ambos falam idiomas distintos. Cada lado seduz com sua narrativa parte significativa da população, numa disputa renhida pelo voto nas próximas eleições.
Não há como o assassinato de Marielle deixar de ser usado politicamente. Para a turma do PSOL, já se tornou uma prova eloquente de como milícias e policiais são os maiores responsáveis pelo descalabro, de como o governo Michel Temer promoveu a intervenção de forma estabanada e irresponsável, sem medir consequências.
Para a turma de Bolsonaro, ao contrário, tornou-se um sinal da hipocrisia que cerca o discurso do PSOL, das organizações de direitos humanos e da esquerda em geral, mobilizada pela morte de uma vereadora de origem humilde, mas insensível à dos mais de cem policiais tombados em serviço no Rio ao longo de um único ano.
Para o Brasil, Marielle personificará doravante o tema central das próximas eleições, a segurança pública. Sua história será usada em defesa de ideologias cujo impacto concreto na redução da violência é rigorosamente nenhum. Violência, como já escrevi, é uma questão complexa, de facetas múltiplas e contraditórias, desafia as respostas viscerais. Mas o momento agora é de dor. Que o luto por Marielle ao menos contribua para o país recobrar a razão.
Fonte: “G1”, 16/03/2018