Fosse essa crônica publicada no último final de ano, muitos leitores iriam pensar que eu estava antecipando o clima da festa da vida: o carnaval brasileiro. Esse rito afim das fantasias, nas quais as máscaras davam licença para todo tipo de comportamento impróprio. Já se disse que mascarar-se é a coisa mais próxima da invisibilidade e do anonimato.
Uma experiência, aliás, difícil de ser vivida neste país onde ser famoso, conhecido ou autoridade (obviamente uma máscara) faz com que se tenha licença para ignorar regras. Se eu não sabia com quem falava, agora – com a obrigatoriedade de usar a máscara contra o vírus – existe um anonimato contrário ao nosso estilo de vida. Um estilo que, conforme adiantei em minha obra e nesta coluna, faz com que o abraço, o cheiro, o contato corporal, seja uma prova de reconhecimento, carinho, afeto e consideração.
Agora, ninguém deve mesmo saber com quem está falando porque nossas “caras” (que só mamãe botaria a mão) estão encobertas e escondidas. Além disso, a semi-invisibilidade social cria uma semelhança oculta entre o vírus e um dos seus remédios mais eficazes.
Estamos todos vivendo num mundo um tanto incômodo e obrigatoriamente anônimo com suas drásticas e dramáticas consequências. A mais pungente delas talvez seja a de não podermos nos despedir dos nossos entes queridos quando eles confirmam a sua transitoriedade e seguem para o túmulo; sobretudo a vala comum numa brutal e imerecida equanimidade.
É triste demais não estar com um ente amado na sua hora final (que é também um pedaço da nossa). Esse que vimos nascer ou que nos trouxe ao mundo, demandando lágrimas de felicidade ou de dor, pois tanto as entradas quanto as saídas são inevitavelmente marcadas, tal como a primeira e a última vez.
A pandemia nos apresenta e atropela com a presença da passagem, do episódico e da transitoriedade. Com um horrível detalhe: o vírus, logo a doença, não tem propósito ou intenção. Ele produz tanto a imensa dor quanto uma prova desagradável de que somos permanentemente rondados pelo infortúnio e pelo aleatório. Apesar dos anúncios de uma superinteligência artificial, nossa capacidade de previsão, mesmo as mais técnicas, está sempre sujeita ao imprevisto e nada do que traz plenitude emocional – amor, felicidade, dinheiro, poder, fama, beleza, inteligência e energia – é permanente. Somos todos, conforme ensinou Freud pelos idos de 1915, sensíveis à severa ausência do permanente e do eterno.
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Fantasmas brasileiros
Quem é o inimigo?
Quanto pior, melhor!
Perdemos a nossa inocência e ficamos cínicos e velhos. Nossos entes amados morrem vitimados por um vírus não previsto ou num acidente. De um lado, é uma irreparável perda, mas, como remarca Freud, todo luto engendra uma oportunidade de descobrir novos caminhos e outros objetos e sujeitos preciosos. Graças à transitoriedade, a vida e a saúde acabam sendo maiores do que a doença e a morte.
Talvez o nosso dever, como diz outro mestre – Thomas Mann –, seja o de compreender que sem a passagem e a transitoriedade (essa relativização da eternidade) jamais seríamos humanos. Mais: todas as vezes que desejamos superar o humano, criando uma fórmula ou um sistema definitivo, abraçamos o vírus da intolerância, do orgulho, da morte e, sobretudo, da injustiça porque negamos aquilo que só nós, humanos, possuímos: a consciência dolorosa e benfazeja de que, se a beleza passa, o mal, a burrice, a intolerância e a doença também se vão no inevitável desenrolar do tempo, o senhor da vida.
A “mascarada” defensiva não é festiva. É um sinal de perigo, guerra, morte e contágio. Uma espécie de respeito desagradável ao poder inexorável da morte, que é o marco definitivo da igualdade neste mundo. E hoje símbolo da doença mortal que – esperamos – seja como a dor e o prazer, episódica. Como todos nós, comuns ou famosos, fracos ou fortes, com ou sem máscaras, diante da pandemia, que obriga a usar máscaras, resta buscar a tarefa de vestir e, tanto quanto possível, diminuir a crueza dessa imensa desigualdade constitutiva do Brasil.
O que fazer quando morrem tantos ao mesmo tempo? Quando perdemos gigantes da literatura, da música, do jornalismo e da dramaturgia ao lado de pessoas comuns que, no entanto, viveram suas epopeias e sofreram o humano desequilíbrio de felicidade e infortúnio. É dolorosa essa experiência de ver a morte, que deveria ser exceção, virar uma pavorosa rotina. Quando os mortos ultrapassam a capacidade dos cemitérios, sabemos que a pandemia é, num plano profundo, uma mascarada fúnebre.
Fonte: “O Globo”, 13/5/2020