No esplêndido livro “A Grande Gripe”, o historiador americano John M. Barry relata como a formação de futuros médicos demorou muito, nos Estados Unidos, a, de fato, prepará-los para a profissão. No século 19, boa parte dos cursos de medicina do país não demandava dos ingressantes conhecimentos científicos e não contava com laboratórios —e o que dizer de hospitais universitários? Mesmo em Harvard, os cursos eram ministrados na forma de palestras e um certo preconceito com a prática era bem disseminado no país.
E, bem no final do século, inspirados por avanços científicos na Europa, as coisas começaram a mudar no país, com muitos médicos —profissão sem grande prestígio à época— indo estudar na Europa e aí vivenciar uma formação bem diferente. O necessário diálogo entre teoria e prática em laboratórios equipados, no acompanhamento de tratamentos dados a pacientes reais, teria trazido uma nova perspectiva a esses profissionais. Afinal, o médico não deveria ser pouco mais que um barbeiro, como fora considerado outrora, ou só um intelectual da medicina.
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Este desafio em valorizar a profissão foi associado a uma mudança de perspectiva que surgiu quando se constatou algo que hoje parece claro: doenças podem ser tratadas desde que, em pesquisas controladas, se constate uma evolução positiva que supere eventuais efeitos colaterais da aplicação de um tratamento.
Ao mesmo tempo, teve que enfrentar uma batalha com a crença prevalente na época sobre como universidades deveriam formar médicos —a partir de um sólido e exclusivo contato com a teoria.
Esta nova abordagem adotada no final do século 19 em medicina, inclusive tornando o acesso à profissão mais seletivo, é também necessária em educação no Brasil. A profissão de professor é extremamente complexa, como perceberam muitos pais ao apoiarem a aprendizagem de seus filhos em casa, e demanda formação em que haja um componente prático sólido, de preferência desde os primeiros anos do curso.
Isso já foi realidade no Brasil, no antigo magistério de nível médio. Ao passarmos, no entanto, esta tarefa de preparar futuros mestres às universidades ou a faculdades isoladas de educação, perdemos esta dimensão de preparo para a profissão, especialmente nas licenciaturas. Felizmente, o Conselho Nacional de Educação aprovou recentemente parecer que estabelece a nova Base Nacional Docente, que inclui enfoque mais profissionalizante.
Muito tempo poderia se passar até que essa medida entrasse em efeito, mas a Covid-19 parece funcionar como uma aceleradora de futuros, para o bem ou para o mal. A história nos dirá se deu certo.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 5/6/2020