Na tarde de uma quinta-feira, 30 de abril de 1977, elas deram-se os braços e caminharam silenciosamente em círculos diante da sede do governo argentino. A primeira marcha das Mães da Praça de Maio contou com 14 manifestantes. O número não importava, nem importavam cartazes ou palavras de ordem. Elas eram mães desesperadas de desaparecidos políticos. A simples presença do grupo exprimia mensagens devastadoras: um grito universal de dor e uma maldição eterna lançada sobre a ditadura militar. No Brasil, neste domingo (15), a relação entre meio e mensagem é completamente diferente. Tudo depende do número e da seleção das palavras.
As manifestações desta sexta (13) obedeceram à lógica do mundo da política organizada. Convocadas pela CUT, pelo MST e pela UNE, elas divulgaram uma mensagem nítida, definida de antemão pelo centro político do lulopetismo. Comissões de frente, serviços de ordem, faixas e carros de som asseguraram a unicidade da palavra. A finalidade era defender o governo, alcunhando como “golpistas” os manifestantes deste domingo. O protesto, quase inaudível, contra as medidas trabalhistas e previdenciárias do Planalto foi apenas uma oferenda prestada pelas três organizações semiestatais ao título de “movimentos sociais” que ainda lhes confere vestígios de legitimidade.
[su_quote]As manifestações deste domingo pertencem ao universo da política virtual, regido pela lei da incerteza[/su_quote]
As manifestações antigovernistas deste domingo pertencem ao universo da política virtual, regido pela lei da incerteza. Convocadas nas redes sociais por uma miríade de pequenos grupos antipartidários, elas carecem de comando unificado e estabilidade de mensagem. Em torno do eixo móvel da indignação contra o governo, oscilam bandeiras diversas, que se estendem do protesto contra a corrupção até o “Fora Dilma” e o impeachment. Nas franjas extremas do movimento, figuras insignificantes, sombrias ou apenas ridículas clamam por uma intervenção militar. Só o número tem o condão de definir a mensagem.
A dimensão das manifestações deste domingo é imprevisível, pois elas não emanam de máquinas políticas profissionais. Se os números forem elevados, as ruas falarão a linguagem da exaltação cívica contra a corrupção, o engodo e a arrogância. O alvo será a privatização partidária do Estado e dos bens públicos. Nessa hipótese, experimentaremos uma evolução política das manifestações multitudinárias de junho de 2013. As pessoas comuns rejeitam o vandalismo, nas suas versões empírica (a destruição das coisas) e simbólica (a demolição das regras de convivência democrática). O perigo reside na hipótese alternativa, de manifestações relativamente pouco numerosas. Nesse caso, sequestrados por radicais de salão, os microfones difundirão mensagem odientas vazadas na gramática do exterminismo ideológico.
Dias atrás, um Lula acuado apelou ao “exército de Stédile”. O monopólio das ruas, exercido por intermédio de “movimentos sociais” financiados pelo Estado, funcionou como precioso ativo político do lulopetismo. Quando as Jornadas de Junho contestaram a exclusividade, o PT tentou restaurá-la por meio do expediente de associá-las à “elite” e ao “preconceito”. No fundo, o Partido está dizendo que o espaço público pertence a ele, e a ninguém mais. De certa forma, os principais partidos oposicionistas curvaram-se à sentença autoritária, como atestam suas adesões retardatárias, oscilantes e envergonhadas às manifestações deste domingo. Isso pode ter consequências desastrosas.
As mães que marcharam na Praça de Maio eram fortes porque eram poucas. Os manifestantes deste domingo, pelo contrário, serão fracos se não forem muitos. Na ausência do senso cívico que costuma acompanhar as multidões, sem um rumo democrático traçado pelas lideranças de oposição, ouviremos mensagens semelhantes às do lulopetismo, mas com polaridades invertidas. Seria uma pena: a falsa prova de que, na cena política brasileira, todos os gatos são pardos.
Fonte: Folha de S. Paulo, 14/3/2015
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