Uma velha expressão, “mercado interno”, tem frequentado declarações recentes da presidente da República e de ministros. Fala-se que o Brasil reagirá à crise externa mediante apoio ao mercado interno. É como se as exportações, que crescerão cerca de 20% em 2011, mais do que as importações, não fortalecessem a economia.
O leitor talvez não saiba, mas o mercado interno está na Constituição. Diz o artigo 219: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos de lei federal”.
Trata-se de uma das esquisitices da Carta de 1988. Como incentivar o mercado interno? As ações governamentais focalizam regiões, setores ou áreas de atividade: Nordeste, educação, ciência, saúde, agricultura, indústria, infraestrutura e assim por diante. Nunca uma abstração. O artigo 219 é um provável reflexo do debate dos anos finais do regime militar. Uma crítica comum na esquerda era acusar o governo de curvar-se a imposições do FMI ou de privilegiar o comércio exterior em detrimento do mercado interno. A crítica era muito aceita, em especial quanto ao último desses aspectos. Mário Henrique Simosen mostrava que não havia incompatibilidade entre os mercados interno e externo. Eles eram complementares, e não antagônicos. Não adiantava. O tema voltava sempre à tona. A “defesa” do mercado interno fazia sucesso.
Mercado interno e mercado externo são meras expressões geográficas do destino da produção nacional. Uma pane é vendida aqui, outra lá fora. O , que vale para o produtor é a demanda, venha ela de um brasileiro ou de quem resida no exterior. O que conta é sua capacidade de competir com produtos estrangeiros, aqui ou em outros países.
O Japão, os Tigres Asiáticos e agora a China se desenvolveram mediante estratégia em que as exportações foram fundamentais. A necessidade de concorrer no exterior forçou as empresas a buscar ganhos de eficiência, adotar práticas avançadas de gestão e criar produtos competitivos. Ao estado coube essencialmente prover educação de qualidade, expandir a infraestrutura e apoiar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
Voltemos à crise. Se ela for do tamanho que o governo imagina, será preciso agir tanto para expandir o mercado interno quanto para sustentar as exportações. Foi assim em 2008, via medidas para aumentar a liquidez interna. elevar o crédito dos bancos oficiais, desonerar a produção de bens duráveis e criar linhas de crédito em moeda estrangeira para suprir de capital de giro os exportadores.
O mercado interno. cabe lembrar, é também o território dos consumidores brasileiros, e não apenas o dos produtores nacionais. A distinção é importante porque para certas correntes de opinião, inclusive no governo, defender o mercado interno significa proteger os produtores, blindando-o da concorrência externa via barreiras .tarifárias e não tarifárias às importações. Preservam-se o lucro e o emprego de uma minoria, em prejuízo da maioria, os consumidores.
Na verdade, a crise deveria ser vista como uma oportunidade para mobilizar apoio politico e social em prol de medidas estruturais de largo alcance. Seria, por exemplo, o caso de uma agressiva política de concessão de serviços de infraestrutura e de uma reforma tributária digna desse nome. A melhoria na operação da logística e a redução da monstruosa complexidade do sistema tributário redundariam em elevação expressiva da produtividade. Ganhariam os produtores, que se tornariam mais competitivos, e os consumidores, que pagariam menos pelos bens e serviços que adquirissem.
Acontece que faz mais efeito politico falar em defesa do mercado interno, seja lá o que isso signifique. Afinal, muitas décadas de políticas de substituição de importações fortaleceram a cultura do isolamento, que vê com desconfiança o mercado externo e apoia propostas de autossuficiência. Daí a esquisita ideia do artigo 219, qual seja a de viabilizar “a autonomia tecnológica do país”. Nem mesmo Cuba ou a Coreia do Norte terão desprezado tanto a contribuição externa ao desenvolvimento nacional.
Fonte: revista “Veja”
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