Numa das raras vezes em que olhou para o Condomínio Porto Rico, um bairro periférico numa região administrativa de Brasília, o Estado se mostrou falho, ineficaz e ausente. O auxiliar de serviços gerais Francisco Viana, de 18 anos, estava lá para provar. Na tarde de quarta-feira, Francisco cavava uma fossa, com terra até o peito, em frente à casa nova do tio no Porto Rico. A fossa — um dos mecanismos mais rudimentares de coleta de dejetos — era aberta a dois metros da tubulação de esgoto instalada pelo governo do Distrito Federal, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal.
A rede coletora não foi concluída e não funciona. As obras da estação elevatória para onde deveriam ser levados os dejetos se resumem a um lote cercado por arame farpado, demarcado pela empresa de saneamento do DF. Nem uma das tradicionais placas oficiais, anunciando a presença do governo na região, chegou a ser instalada no local. Os moradores desconhecem que o Estado programou alguma ação ali. O esgoto, fétido, escorre sobre as ruas de terra batida. Os moradores ainda dependem de fossas como a cavada por Francisco.
— Ninguém quer cavar mais fossa. O governo tem de liberar logo a rede para a gente usar — diz o jovem, que conclui uma escavação em dois dias.
O sistema de acompanhamento da obra no site da Caixa Econômica Federal (CEF) mostra o projeto como “paralisado”, com menos de 5% de andamento. De R$ 1,9 milhão previstos no PAC, num contrato assinado em 2011, foram liberados até agora apenas R$ 84,3 mil. O abandono da comunidade de Porto Rico, que chegou perto de ter acesso a saneamento básico e que precisa fazer proliferar as fossas pelas ruas, não é algo isolado.
“O Globo” acompanhou três projetos de saneamento básico, em Brasília, que resumem as dificuldades do poder público em fazer avançar a universalização da coleta, do tratamento de esgoto e do fornecimento de água tratada. Por problemas diversos, da deficiência num projeto de engenharia à falta de recursos e falhas na licitação, as obras pararam, atrasaram ou nem chegaram a ser iniciadas.
No Brasil, 51,4% não têm coleta de esgoto
No último dia 25 de março, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou os resultados de uma auditoria no programa de água e esgoto do Ministério das Cidades, que repassa recursos do PAC por meio da Caixa. De 491 contratos analisados no fim de 2013, 283 (57,6%) se referiam a obras paralisadas, atrasadas ou não iniciadas. Somente 58 (11,8%) foram efetivamente concluídos.
Os contratos somam R$ 10,4 bilhões. O valor das obras paralisadas, atrasadas ou não iniciadas soma R$ 6,6 bilhões, ou 63%. Só os projetos parados correspondem a investimentos de R$ 1,4 bilhão.
O Nordeste concentra a maior quantidade de contratos de obras paralisadas, atrasadas ou nem iniciadas. Quase metade dos contratos analisados, 47%, está na região. Em seguida, o Sudeste, com 27,7% dos contratos com problemas; o Centro-Oeste e o Norte, com 10,6% cada; e o Sul, com 7%.
No Brasil, 51,4% das pessoas não têm acesso a coleta de esgoto e 61% não sabem o que é ter o esgoto tratado, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2013. A falta de acesso a água tratada é uma realidade para 17,5% da população. Se mantido o ritmo de investimentos definido para 2011, o 1º ano de mandato da presidente Dilma, a universalização dos serviços de esgoto só ocorreria em 2060 e de água, em 2039.
Porto Rico é um lugar isolado, na periferia de uma região já periférica em Brasília, chamada Santa Maria. As casas surgiram a partir de uma invasão. O coveiro Leandro de Souza, de 27 anos, ocupou um lote há três anos, com a mulher, Marinez Rodrigues, 19. A filha Sarah nasceu há 4 meses.
— Tem duas coisas urgentes que a gente precisa aqui: asfalto e rede de esgoto — diz o coveiro.
Leandro, que recebe R$ 873 por mês, construiu uma casa de tijolo. O imóvel tem dois cômodos, sem estrutura para banheiro, que foi improvisado no lado de fora. Ao lado, o jovem cavou uma fossa.
No Porto Rico, parte das famílias lança diretamente nas ruas a água usada na cozinha e a usada no banho. O restante é destinado às fossas. São comuns vazamentos de esgoto. Parte desses lançamentos ocorre a partir da tubulação instalada por meio do PAC. A estrutura, incompleta e sem destinação final, já não suporta a quantidade de esgoto.
A auditoria feita pelo TCU mostrou que a principal causa de paralisação ou atraso das obras de saneamento é a deficiência dos projetos de engenharia. “A qualidade insuficiente dos projetos de engenharia é a face mais visível das carências de gestão, econômicas e de planejamento do setor”, cita o relatório. Depois aparecem problemas nas licitações e contratos, na obtenção de áreas necessárias para as obras, no licenciamento ambiental e no repasse de recursos pelo Ministério das Cidades.
Os auditores detectaram alterações no sistema da Caixa, como uma obra aparecendo como “concluída” e, meses depois, “paralisada” ou “atrasada”. Alguns projetos ficaram sem evolução por mais de 6 meses. O TCU deu 90 dias para o Ministério das Cidades apresentar um plano de ação com cronograma “visando mitigar as causas de atrasos, paralisações e retardo no início das obras de saneamento”.
“O Globo” enviou questionamentos ao Ministério das Cidades nas últimas quarta e quinta-feiras, com pedidos de informação sobre os atrasos e os problemas das obras de saneamento básico acompanhados pela reportagem. O ministério não respondeu as perguntas.
A assessoria de imprensa limitou-se a dizer que a Secretaria Nacional de Saneamento ainda não foi oficialmente informada sobre a auditoria do TCU. “Só vamos nos pronunciar após o recebimento e a análise que o trabalho do TCU requer.” Ainda segundo o ministério, “eventuais falhas que possam existir serão corrigidas”. “O Ministério das Cidades, que se pauta pela transparência total das suas ações, acompanha a execução de mais de 2.951 obras obras de saneamento do PAC em todo o país, em parceria com estados e municípios, responsáveis pela execução dos empreendimentos, com recursos que chegam a R$ 85,7 bilhões”.
Fonte: O Globo
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