Como a pobreza é privação de capacidades básicas, ela jamais deveria ser medida apenas com estatísticas de insuficiência de renda. É pobre mesmo quem tem renda superior ao critério de corte (“linha de pobreza”) se não puder convertê-la em vida decente. Por falta de saúde ou de educação ou outras carências.
Essa conclusão se apoia na imensa quantidade de minuciosas pesquisas feitas por equipes de primeira linha junto às populações mais desvalidas do mundo. Foram sintetizadas no livro “Desenvolvimento como liberdade”, do prêmio Nobel Amartya Sen (Companhia de Letras, 2000). Principalmente no quarto capítulo, intitulado “Pobreza como privação de capacidades”.
É leitura recomendável a quem acredita que só menos de um terço da população brasileira continua pobre porque em 2008 já não passavam de 28,8% os condenados a se virar com menos de meio salário mínimo. Basta outro dado bem objetivo para perceber que metade da população permanece pobre: a falta de acesso à rede de esgoto. Em 2009 eram 41% os domicílios sem saneamento básico, e é neles que ocorrem as mais altas densidades de habitantes.
Falta de acesso a esgoto impacta a inteligência das pessoas por causa de infecções parasitárias na infância. Evidência consolidada por recente estudo de Cristopher Epping e colaboradores, publicado no prestigioso periódico científico “Proceedings of the Royal Society”, e relatado pelo doutor Dráuzio Varella em sua coluna na “Folha de S. Paulo” de 11 de setembro.
O cérebro é o órgão do corpo humano que mais consome energia: 87% no recém-nascido, 44% aos cinco anos, 34% aos dez. As infecções parasitárias desviam energia para ativar o sistema imunológico. Repetidas diarreias até os cinco anos roubam do cérebro as calorias necessárias a seu desenvolvimento, podendo comprometer a inteligência para sempre.
É pura ilusão, portanto, supor que não sejam pobres pessoas que padeçam dessa catastrófica privação que é o permanente risco de contrair parasitoses, só porque ganham mais de meio salário mínimo. Chega a soar como propaganda enganosa o uso do tosco critério de renda monetária para dizer que a pobreza está despencando. Encobre a inépcia dos governos em enfrentar o desafio do saneamento.
O número de moradias consideradas inadequadas pelo IBGE só diminuiu dez pontos entre 1995 e 2002 (59,1% para 49,5%), e apenas cinco pontos entre 2003 e 2008 (48,3% para 43%). Se, ao contrário, tivesse sido dada prioridade ao acesso do andar de baixo a algo tão essencial quanto o esgoto, isso teria favorecido rápidos aumentos das médias do quociente de inteligência (QI), o chamado “efeito Flynn”.
Mas não é só. Essa tragédia do saneamento básico também ajuda a entender quanto é falsa a afirmação de que a agenda socioambiental não seria de interesse dos menos favorecidos. Ou ainda, de que tal agenda só conseguiria sensibilizar os segmentos minoritários da sociedade que já estariam cultivando valores “pós-materialistas”.
A hipótese de significativa alteração das prioridades valorativas individuais em direção a uma postura “pós-materialista” foi lançada no final dos anos 1970 no livro “The Silent Revolution”, pelo cientista político americano Ronald F. Inglehart. Hoje ele dirige o World Values Survey, uma rede que pesquisa esse tema em 80 sociedades dos seis continentes habitados, cobrindo 85% da população global (www.worldvaluessurvey.org/).
Essa rede coleta evidências de que os fortes contrastes culturais não impedem que a prosperidade sempre provoque esse tipo de reorientação valorativa, com desdobramentos em várias esferas: da organização do trabalho às relações de gênero, do comportamento sexual à religiosidade. Na política, ela teria efeitos dos mais positivos para os processos de democratização.
No entanto, isso não foi confirmado pela pesquisa “Participação e pós-materialismo na América Latina”, dos professores Ednaldo Ribeiro e Julian Borba, cujos resultados estão no número de junho da revista Opinião Pública (vol. 16, n. 1, p. 28-63). Para a quase totalidade dos casos analisados, o simples grau de escolaridade do entrevistado superou a escala de materialismo/pós-materialismo.
O mais importante, todavia, é rejeitar a ideia de que a sustentabilidade como novo valor só poderá empolgar elites, sejam elas pós-materialistas ou só de alta escolaridade. Isso certamente acontece quando toda a ênfase é colocada nas mais complexas questões, como a ruptura climática, a erosão da biodiversidade, o plantio de sementes transgênicas, ou a geração nuclear de eletricidade, por exemplo. Todavia, não existem temas mais imediatamente socioambientais do que acesso à rede de esgoto, à água potável, ou à coleta de lixo.
Em suma: como a queda do contingente com menos de meio salário mínimo não está sendo acompanhada por mais acesso às exigências mínimas para decente padrão de vida, isso só reconfirma que será muito mais decisivo para o desenvolvimento um programa de qualidade socioambiental do crescimento do que o ilusório PAC.
Fonte: Jornal “Valor econômico” – 21/09/10
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