Eu era ainda criança e estudava inglês no Curso Oxford. No livro de gramática, havia um pequeno texto sobre racismo, em que uma criança branca e outra negra, depois do primeiro encontro, numa sociedade racista como a americana, diziam uma para a outra: “It is just skin.” A professora, uma senhora inglesa que havia muito vivia no Brasil, teve de nos explicar por que aquelas crianças demoraram tanto tempo se medindo para chegar a uma conclusão tão óbvia, que nós, brasileiros, sempre conhecemos: a diferença entre um branco e um negro é só a cor da pele. Eu tinha sete anos, e a professora nos falou de Martin Luther King, do seu assassinato recente, da sua luta pelos direitos civis. Aquilo me marcou. Antes que eu receba e-mails irados dizendo que essa história é a prova de que sou um privilegiado de berço, corro para dizer que meu pai, analfabeto, tendo fugido da miséria em sua Síria natal, trabalhava numa quitanda, das duas da manhã, quando saía para fazer o mercado, até as oito da noite, quando jantava e caía na cama, exausto. Tinha três sócios, o que fazia a renda da loja mal ser suficiente para sustentar uma família de oito pessoas: ele, minha mãe, meus avós maternos e os quatro filhos. Com uma sabedoria imensa, porém, tudo o que ganhava gastava na educação dos quatro filhos, pelo que seremos gratos a ele eternamente. Ele perdeu a saúde, mas nos legou uma lição que, acredito, a maior parte dos pais deixa para os filhos: educação e trabalho, eis a chave para que alguém alcance seus desejos. Essas duas pequenas histórias explicam um pouco por que me dedico tanto a escrever sobre cotas: eu acredito que todos devemos ter as mesmas oportunidades, que ninguém é melhor do que ninguém, que a educação é o motor para superar obstáculos e que o trabalho é a fonte de renda que mais satisfação dá a uma pessoa. Nossa legislação já nos garante direitos iguais, e na era republicana sempre garantiu. Vivemos num país em que a miscigenação era, até bem pouco, uma realidade que costumávamos comemorar. A educação é ainda um flagelo, mas se investirmos nela, com seriedade, os brasileiros de todas as cores e de todas as origens terão chances iguais de superar as suas dificuldades e de se realizarem em seus trabalhos. Querer dividir o país em raças, repito, é um erro, porque antes das elites, o que se cindirá será a pobreza: a cor da pele dará privilégio a um pobre e o negará a outro. Isso é explosivo. Como disse no meu artigo de terça-feira, o meu sonho é o de Martin Luther King: quero viver numa sociedade em que as pessoas sejam julgadas pelo seu caráter, jamais pela sua cor. Há anos se debate nos EUA se King, hoje, apoiaria ou rejeitaria cotas, o que é uma discussão estéril: o herói está morto, e querer extrair dele um pensamento numa ou noutra direção é algo a que todos têm direito sem que, no entanto, tenham jamais inteira razão. John David Skrentny, sociólogo americano da Universidade da Califórnia, San Diego, escreveu o que é considerada a mais completa pesquisa histórica sobre políticas afirmativas nos EUA: “Ironias das ações afirmativas: política, cultura e justiça na América”, livro que comentarei num próximo artigo. Perguntei a ele o que achava do debate que se trava hoje no Brasil. Ele me respondeu que acredita que, privadamente, King e outros líderes achavam que ações de preferência racial ajudariam os negros americanos. Mas acrescentou: “No entanto, creio também não ser de muito interesse o que eles pensavam ou discutiam reservadamente. O importante foram suas ações públicas, seu ativismo político. Quando estudei a história desses fatos, quis saber o que os líderes do movimento de direitos civis reivindicavam ou exigiam do governo federal. Não consegui encontrar um só caso em que King reivindicasse ou exigisse do governo uma política preferencial de emprego com base em raça.” Skrentny é simpático a políticas afirmativas. O que ninguém discute é que o cerne do pensamento de King é que uma sociedade não deve dividir as pessoas em raças, porque somos todos iguais, temos todos os mesmos direitos e devemos ter todos as mesmas oportunidades. Não assinei o manifesto contra as cotas nem ajudei a redigi-lo, porque isso não me cabe como jornalista. Mas, se o tivesse feito, teria também usado o trecho do discurso de King, porque considero que ele é absolutamente adequado àquilo que o manifesto prega: uma sociedade mais igualitária, mais justa, que equipe os pobres, negros ou brancos, para que tenham, de fato, igualdade de oportunidades. Em seu artigo de quarta-feira, sem me citar, Elio Gaspari volta ao tema, e com acusações ainda mais pesadas aos que são contrários às cotas. Em relação a um professor americano contrário a políticas de preferência racial, Elio escreveu: “Wood é contra as ações afirmativas, mas é um sujeito decente. Entrou na briga sem um tostão no bolso.” O que ele quis dizer com isso? Que os brasileiros contrários às cotas são indecentes e que se manifestam por dinheiro? Que reação posso eu ter diante disso? Dizer que indecente é a mulher do padre ou que corrupto é a mãe do vizinho? Não, não farei isso. Elio é uma pessoa decentíssima, honestíssima, acima de qualquer suspeita. Quando trabalhei com ele na “Veja”, aprendi muito, e devo muito a esse aprendizado. Ele me ensinou que não se acusa sem provas, e que as palavras devem ser medidas para que não soem como calúnias. Vou continuar a discutir o assunto, porque ele é fundamental para o país. Mas vou debater apenas idéias. Como aprendi, vou passar ao largo do que não é essencial.
O Globo, 25 de julho de 2006
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