Conversa na pós-Modernidade. Política, Sociedade e Mídia
Mídia e política estão esvaziadas? Numa conversa ancorada pelo professor José Alexandre Hage, doutor em Ciência Política pela Unicamp, membros do Centro de Estudos sobre o Atual e o Quotidiano da Universidade Sorbonne (CEAQ), o italiano Fabio La Rocca, o francês Stéphane Hugon e o brasileiro Marcos Troyjo, debatem o “ar do tempo” pós-moderno em material inédito.
Com base nas análises do sociólogo francês Michel Maffesoli, co-fundado do centro com Georges Balandier, os pesquisadores falaram sobre política e mídia no cenário contemporâneo permeado por novas tecnologia.
Leia a entrevista do CEAQ, um dos principais centros mundiais de conhecimento sobre a influência de novas tecnologias na vida cotidiana.
(Tradução de Aline Leclerc)
José Alexandre Hage: Como a política se manifesta na sociedade pós-moderna? O que é política no espaço sociotecnológico intermediado pelo Facebook, pelo Twitter, pelo iPad, etc?
Fabio La Rocca: A política na pós-modernidade muda de pele. É transfigurada através da Internet. Não é mais a política clássica, hoje obsoleta, que predomina. Pelo contrário, a participação e contribuição na Rede cria novas formas de ação visíveis no que poderíamos chamar de “Net-Ativismo”. Quanto ao uso do Facebook e do Twitter, a atualidade nos mostra o poder que exercem na opinião pública. São formas de exposição e denúncia. Podemos sentir seu impacto e significado através de fotos postadas na web em acontecimentos recentes no Irã, Tunísia, Egito, Líbia.
Estas formas de rebelião sociopolítica oferecem a magnitude e visibilidade permitidas pelo imediatismo das “mensagens instantâneas” no Twitter e das fotos que circulam na paisagem da web. É um processo em que não há um líder. Trata-se de plataformas de participação coletiva para divulgar sentimentos. Facilitar a circulação de idéias e fatos que os poderes mais estabelecidos e tradicionais gostariam que permanecessem invisíveis. A profusão de artefatos como o iPad ou Galaxy é o resultado de uma forma de existência, a do homem pós-moderno sempre conectado. Esses objetos nos possuem. São nossos donos. Instalam uma nova forma arquetípica de relação com o mundo. Quase eróticos, os efeitos sociais de sua popularização são de ordem passional, de apego simbólico, espécie de prolongamento sensorial e extensão do nosso corpo cada vez mais tecnológico.
Esses tabletes, como efeito fenomenológico, são também consequência do crescimento das identidades digitais e das “nuvens” informacionais, já que muito claramente a experiência existencial é móvel. Do ponto de vista social, há um hibridismo tecnoespacial que permite a presença de múltiplas identidades, máscaras coletivas no teatro da vida cotidiana.
Stéphane Hugon: As tecnologias de rede são a pior e a melhor notícia para a política. Podemos considerar que a estrutura de delegação da palavra e do poder, tal como foi inventada e posta em prática no século XVIII, com base nos ideais filosóficos e democráticos, chegou a seu ponto de saturação. Isto pode ser observado, ao menos na Europa, onde se percebe um avanço lento do grau de abstenção política em qualquer tipo de votação. Em alguns casos (como o de algumas eleições europeias, a abstenção chega a quase 75% em determinadas faixas etárias).
Isso não significa que as formas de participação tenham desaparecido, mas o fato é que a energia social se desloca em direção a outras estruturas, outras formas de mediação. As redes, e particularmente as ferramentas sociais, nos levam a essa “transfiguração da política”, como caracterizado por Michel Maffesoli, para quem a figura vertical da árvore e substituída pela horizontalidade dos rizomas. O sentimento dos participantes é o de que esta estrutura é mais direta, mais animada, e dá-lhes mais espaço. Eis a nova forma de política.
O que talvez seja uma característica dos tabletes e dispositivos móveis é que permitem uma utilização para além dos limites do que foi a restrição de toda a Internet desde sua invenção, ou seja, a relação com um desktop ou computador fixo. A mobilidade hoje está se tornando o principal acesso à Internet. Durante os primeiros quinze anos da Internet, apenas uma em cada duas pessoas estava plugada a um computador. Mais recentemente, esses índices não avançam como antes. Com os novos instrumentos de conexão, novos usuários entram no mercado com outros imaginários, outras habilidades, outros requisitos. Esta é provavelmente uma oportunidade para o surgimento de novos sistemas operacionais, outras interfaces, outros serviços. E outras relações sociais.
Marcos Troyjo: A política metamorfoseou-se. O ideal romântico de revolução não faz mais parte do elenco de aspirações. Ao contrário do que se poderia imaginar como efeito das redes sociais, as agendas propositivas e críticas estão mais locais. Sabe-se o que quer e como fazer no seu bairro, cidade. Menos, porém, no nível de uma unidade federativa (estado) ou país. Muito menos para o mundo.
A política, ao menos em seu debate quotidiano, não é mais a dos grandes sistemas ou soluções. Além desse caráter de proximidade “epidérmica”, há a questão da política como espaço de defesa da voz de afinidades estéticas ou profissionais. Daí em eleições aos mais variados níveis testemunharmos o êxito de candidatos dos taxistas, surfistas ou de grandes torcidas de futebol. São essas afinidades estéticas que turbinam também as “células” de proximidades de seus “amigos” no Facebook ou “seguidores” no Twitter. O aparecimento dos tabletes só acelera esse processo, que tem ramificações que vão além da tecnologia. Pessoas andam na rua como “zumbis” dedilhando seus smartphones. Os tabletes dão acesso gratuito a tesouros da literatura universal. Experiências educacionais e de entretenimento multimídia são verdadeiramente possíveis. Já no nível da política de cargos eletivos, o que vemos é o decréscimo relativo da importância dos discursos programáticos e a instalação definitiva da construção de candidatos a partir de marketings de empatia. As redes sociais, dado seu caráter instantâneo e superficial, ajudam nessa “efemeridade”.
Hage: O ambiente pós-moderno é o das grandes generalizações ou o dos especialistas? As tribos contemporâneas são insularizadas ou potencializadas pelas Tecnologia da Informação (TIs)?
Rocca: A tribalização da sociedade pós-moderna, cuja intuição teórica coube a Maffesoli na demonstração de seu efeito sobre o corpo social, encontra uma alta condensação com o advento de novas tecnologias que fortalecem laços sociais, maneiras de estar-junto, isto é, as afinidades eletivas.
A utilização das TIs potencializa esses elos de forma sintomática. Uma conexão permanente que nada mais é que a “constrição” de afinidades que nascem do desejo de comunicar-se, ou seja, de se pôr em comunhão.
Hugon: O conceito de “insularização” é muito interessante, que reflete a morfologia social ora em vigor, especialmente com a tecnologia. Mas é importante entender que cada uma dessas ilhas não é completamente isolada ou independente das outras. Há um efeito que se poderia chamar de “arquipélago”, pelo qual cada comunidade se relaciona com outras comunidades.
Percebemos também, empiricamente, que cada pessoa pertence à diversas comunidades diferentes, por isso não há exclusividade. O especialista, portanto, não é mais uma figura oposta ao generalista.
Troyjo: Numa dimensão mais funcional, os especialistas estão ganhando dos generalistas. No mundo do conhecimento e do trabalho, isso se manifesta na verticalização do saber e em aumento de produtividade. Mas num nível mais pessoal isto tem repercutido em pessoas cada vez mais unidimensionais e, por que não dizer, desinteressantes. E também desinteressadas em ultrapassar as fronteiras de sua posição perante o mundo do trabalho de modo a promover uma socialidade “além-labor”.
As tribos, porém, como bem conceitualiza Maffesoli, vão oferecer um totem, um religar (a bem dizer, uma religião), além do mundo imediato do fazer. Daí o culto do corpo, as grandes aglomerações celebracionais em torno de mega-eventos musicais e esportivos. O interesse, ou cimento social, das tribos, nesse sentido, se potencializam com as TIs. Seus rituais e “agendas” se disseminam ampla e velozmente. E nesse contexto pode-se pertencer a várias tribos, o que sublima os efeitos da especialidade e faz emergir uma “transtribalização”.
Hage: É correto pensar nas fronteiras do Estado-Nação na era pós-moderna? Testemunhamos uma grande homogeneização do espaço pós-moderno ou existe ainda a possibilidade de preservar especificidades culturais, de gosto, de visão de mundo?
Rocca: Ao invés de falar sobre a “era pós-moderna”, seria melhor focar o aspecto de “climatologia” pós-moderna, ou seja, o Zeitgeist, o espírito do tempo, o ar que respiramos em nosso cotidiano. Neste clima, o universal convive com o particular. Se, por um lado, há uma tendência à homogeneização cultural simplista, por outro ainda existem formas específicas de gosto, características culturais relacionadas a um certo instante, certo território ou a certa espacialidade ontológica.
Mais tarde, pelo aspecto da difusão de tecnologia e formas miméticas de existência, irá propagar-se o espírito de comunhão e participação no corpo social. Se as particularidades culturais e as visões de mundo estão enraizadas em especificidades territoriais, elas ultrapassam os limites geográficos da contaminação pela profusão das interfaces em rede.
Hugon: A questão das fronteiras é importante, e talvez tenham ressurgido com a sociedade em rede. Foi a modernidade que sugeriu as nações como formas de expressão das identidades culturais, tendo como pano de fundo a idéia de universalidade.
Hoje, é provável que as fronteiras nacionais tenham realmente deixado de refletir identidades culturais. E com o novo teatro global eletrônico, vemos o ressurgimento de identidades locais que circulam em conjuntos vastos. Como se as fronteiras se diluíssem em benefício de grandes territórios, embora essas áreas também tenham seus limites, que são mais confusos e dinâmicos.
Podem-se ver assim comunidades, baseadas na música ou em alguns jogos eletrônicos, que se reconhecem umas às outras, seja qual for a cor do passaporte. A Internet facilita a expressão de novas identidades que as fronteiras não podem conter. As novas fronteiras são provavelmente móveis.
Troyjo: As novas tecnologias aproximam. Isto se faz para o bem e para o mal. A proximidade desvenda identidades, mas também realça diferenças, sobretudo civilizacionais. Este o principal combustível para os conflitos contemporâneos conforme a ainda atual formulação de Samuel Huntington.
As fronteiras não deixaram de existir. Tornaram-se mais porosas. O Estado-Nação, que sustenta sua existência na dualidade interno-externo, vê-se desorientado com sua vulnerabilidade física, macroeconômica e cultural. Suas delimitações são vazadas tecnológica, financeira e culturalmente, o que produz novas sínteses – por vezes enriquecedoras, por vezes fragmentárias. Geram como contrapartida bandeiras preservacionistas de tradicões e especificidades – o que, se empunhadas com o valor maior da tolerância, deve ser bem-vindo num mundo que se quer plural.
Hage: Grandes soluções, grandes sistemas de explicação – faz sentido pensar nisso no mundo contemporâneo? Mídia e a política estão esvaziadas, tornando-se reféns de software, algoritmos e portabilidade? Há espaço para conteúdo crítico e agendas propositivas na pós-modernidade?
Rocca: Estamos numa fase em que o discurso político, as grandes soluções e explicações estão em crise. A Razão tem perdido seu estatuto porque já não consegue entender o que “é” e o que “se vive” no aqui e agora do mundo contemporâneo. Não é capaz de capturar a “ambiência dos instantes”, pois se projeta para além da existência cotidiana. O discurso político convencional não tem mais encanto. Há uma repetição de promessas que soam como o ritmo maçante da música tecno.
O fato é que hoje as pessoas se afeiçoam apenas a um êxtase emocional coletivo, criando um som social multiforme – audível nas manifestações de rua que vão na contramão da compreensão do ambiente social por parte do corpo político. Há sempre uma tendência em pensar nas formas que nos tornam reféns em nossa sociedade, particularmente em relação aos meios de comunicação.
A obsessão por propostas, a crítica – tudo isso é um puro estilo político. Os meios de comunicação tradicionais ainda são vistos como mecanismos de regulação e controle por parte do poder estabelecido, ao passo que a sociabilidade online tem uma configuração essencialmente ativista. Trata-se de um “Net Ativismo” como paradigma de participação que usa a tecnologia como forma de multiplicar opiniões e contribuir para uma mutação sociopolítica, tanto local como global.
Na pós-modernidade o “recipiente” prevalece sobre o “conteúdo” no sentido de que é a arquitetura do meio que gera a atração, que dá consistência às formas simbólicas da presença social. Estamos sempre em linha com o slogan de McLuhan: O Meio é a Mensagem.
Hugon: Há provavelmente hoje algo que torna difícil a receptividade social dos grandes discursos políticos ou racionais. Trata-se do sentimento de que a História mostrou o limite – e mesmo a traição – desses grandes sistemas de explicação do mundo.
A queda do Muro de Berlim e o colapso dos antagonismos Leste-Oeste deu o sinal para o desaparecimento da oposição entre soluções verdadeiras e/ou falsas. Enfraqueceu também as grandes certezas e fortaleceu o relativismo e as soluções locais. É como se a grande História fosse sucedida por pequenas Histórias. Histórias mais próximas, mais encarnadas, mais centradas na vida imediata, e, portanto, mais críveis.
Elas encontram acolhida especial nas novas tecnologias que favorecem pequenas trocas, pequenas conversas. Há correlações entre a forma das mídias, a estrutura social e os imaginários políticos e sociais. A sociedade democrática e seus imaginários progressistas encontravam ressonância com as mídias de massa, seja em papel ou na Televisão. Hoje, a sociedade encontra-se segmentada e movida por estéticas comunitárias. Vê-se portanto beneficiada e em sintonia com a tecnologia de redes e territórios. A política tem sua expressão natural no primeiro espaço. Mas emergem outras aspirações com as tecnologias de rede.
Há sempre uma especial intimidade entre o fundo e a forma. No limite, talvez o conteúdo crítico jamais tenha existido no espaço midiático.
Troyjo: A mídia esvaziou-se, num certo sentido, porque evoluiu, como evoluíram também a origem e os destinos da informação. A origem, há um tempo restrita à redação própria de cada veículo, hoje está na multidão de sites, agências de notícias, blogs, universidades, nas empresas de qualquer ramo. Circula, enfim, no ciberespaço. O destino, na mesma medida, que segmentava por mídia o tipo de consumidor em suas várias formas (leitor, ouvinte, telespectador, internauta), condensa-se progressivamente graças à convergência tecnológica.
A mídia, como sinônimo de imprensa é irmã-gêmea da Liberdade de Expressão. Esta identidade sempre se alimentou pela noção de que o livre debate de idéias (exposto pela mídia) constrói agendas críticas ou propositivas para a Utopia – do grego eu (bom) tópos (lugar). Objetivo eminentemente político. A questão da sobrevivência das empresas de mídia também permitiu um deslocamento do eixo jornalístico para o do entretenimento, sublinhando assim a relação “interesse público X interesse do público”. Quanto a este último, a ausência de regras e auto-regulação tem conduzido ao mórbido, à vulgarização, à TV Trash e aos sites de ódio.
O discurso político orientado a grandes soluções esvaziou-se. Por décadas uma dicotomia superficial antagonizou, como soluções pré-fabricadas, liberalismo “terra de ninguém” versus socialismo sufocante. Na experiência concreta isso produziu Estados que “dormem no ponto”, não estabelecem regras, nada propõem. Sua inação leva a que, por meio da democracia, antidemocratas dilapidem a própria democracia. Ou convidam a um “vale-tudo” que encontra exemplo econômico recente na “Grande Recessão” deflagrada em setembro de 2008. Por outro lado, a experiência do socialismo concreto, ou de congêneres cartoriais, concentra uma burocracia hipercodificadora e cleptocrática, cujo principal objetivo é rapinar a sociedade de suas riquezas e alijá-la de sua criatividade.
Embora concorde com a prevalência, sobretudo nas chamadas “sociedades abertas”, do local e do imediato na vida política, vejo ainda espaço para um discurso voltado à edificação do que poderíamos chamar de “Estado-farol”. Nova utopia que sinaliza quais devem ser os interesses nacionais e as ferramentas estratégicas para atingi-los. Permite à sociedade civil plena expressão e o desencadeamento de amplas forças produtivas.
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