Intelectuais tendem à utopia, pois ela precisa de uma descrição e eles são seus autores. Isaiah Berlin não está entre os filósofos mais célebres precisamente porque é um pensador antiutópico. “As utopias têm o seu valor – nada amplia de forma tão assombrosa os horizontes imaginativos das potencialidades humanas -, mas como guias da conduta elas podem se revelar literalmente fatais”, anotou Berlin. As utopias almejam a completa realização de um conjunto de premissas, com a exclusão de todas as outras. É um caminho muito perigoso, “pois, se realmente acreditamos que tal solução é possível, então com certeza nenhum preço será alto demais para obtê-la”.
A democracia constitui um sistema político avesso à utopia porque, por definição, rejeita atribuir estatuto de verdade incontestável a qualquer conjunto de premissas ideológicas. Os intelectuais utópicos têm um lugar na democracia – o de instigadores do debate público. Mas o sistema democrático de convivência de ideias contraditórias se estiola quando eles são alçados à posição de sábios oficiais e suas utopias são convertidas em verdades estatais.
Samuel Pinheiro Guimarães, até outro dia secretário-geral do Itamaraty, foi guindado à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). No novo cargo, elaborou um documento intitulado O Mundo em 2022, ainda em versão preliminar, que circula no governo e no Itamaraty. Trata-se de um delineamento das tendências do sistema internacional, com propostas de políticas estratégicas do Brasil. Dito de modo direto, é a plataforma de uma utopia ultranacionalista, a ser aplicada num hipotético governo de Dilma Rousseff, que colide com os valores e as tradições da democracia brasileira.
Num texto escrito em português claudicante, o intelectual utópico expõe uma doutrina antiamericana que solicita uma curiosa articulação estratégica entre Brasil, Rússia, Índia e China “para reformar o sistema internacional e torná-lo menos arbitrário”. Os Brics, acrônimo cunhado no interior de um banco de investimentos, constituem um “bloco” apenas na acepção restrita de que seus integrantes passaram a influenciar a governança econômica global. Eles, porém, não compartilham interesses geopolíticos relevantes – uma evidência clamorosa que escapa por completo à percepção de Guimarães, moldada por um obsessivo antiamericanismo.
Os equívocos teóricos pouco significam, perto das prescrições políticas. Nostálgico do “Brasil-potência” dos tempos de Ernesto Geisel, Guimarães atribui ao Estado os papéis de “estimular o fortalecimento de megaempresas brasileiras (…) para que possam atuar no cenário mundial globalizado” e de conduzir um programa de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de amplas implicações militares. Os significados desta última proposição podem ser entrevistos na passagem em que o autor define o Tratado de Não-Proliferação Nuclear como o “centro” de um processo ameaçador de “concentração de poder militar”. A leitura do documento oferece indícios sugestivos para a compreensão da lógica subjacente à aproximação entre Brasil e Irã e à operação diplomática brasileira de cobertura do programa nuclear iraniano.
No programa ultranacionalista, ausências falam tanto quanto presenças. Ao longo de 54 itens, não há nenhuma menção aos direitos humanos. Não é surpreendente: um livro de Samuel Pinheiro Guimarães, publicado em 2006, qualificou a defesa dos “direitos humanos ocidentais” como uma forma de dissimular “com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das Grandes Potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos”. A militância do governo Lula contra a política internacional de direitos humanos – expressa na ONU, em Cuba, no Irã, no Sudão, na China e em tantos outros lugares – não é um fenômeno episódico, mas reflete uma visão de mundo bem sedimentada. Lastimavelmente, as ONGs brasileiras de direitos humanos financiadas pela Fundação Ford trocaram a denúncia de tal militância pela aliança com o governo na difusão da doutrina dos “direitos raciais”.
A utopia regressiva de Samuel Pinheiro Guimarães colide com a Constituição, que veta a busca de armas nucleares e situa a promoção dos direitos humanos no alto das prioridades de política externa do Brasil. Se a sua plataforma política aparecesse na forma de artigo, isso não seria um problema – e, talvez, nem mesmo uma fonte de debates interessantes. As coisas mudam de figura quando ela emerge como documento de Estado, produzido num Ministério encarregado de formular as diretrizes estratégicas do País.
O governo Lula exibe, sistematicamente, inclinação a partidarizar o Estado. A contaminação ideológica da política externa é uma dimensão notória dessa inclinação. Há, contudo, um antídoto contra a doença, que é a supervisão parlamentar das diretrizes estratégicas de política externa. Nos EUA, uma nação presidencialista como a nossa, as prioridades e os orçamentos do Departamento de Estado são submetidos ao crivo do poderoso Comitê de Relações Exteriores do Senado, expressão do controle social, bipartidário, sobre uma política de Estado. O Senado brasileiro tem uma Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Entretanto, sua gritante ineficácia, que exprime uma carência quase absoluta de poder real, proporciona ao governo as condições para a continuidade da folia ideológica em curso.
A SAE foi concebida como uma jaula dourada para acomodar (e ridicularizar) Roberto Mangabeira Unger, quando ele aderia ao governo que definira como “o mais corrupto da história”. Agora, sob Guimarães, a jaula transforma-se em linha de montagem de uma utopia ultranacionalista que funcionaria como a régua e o compasso da inserção internacional do Brasil. A Nação tem o direito inalienável de se proteger contra o Ministério da Utopia, sujeitando a política externa ao escrutínio democrático dos parlamentares.
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 05/08/2010
O congresso se deixou algemar, feliz com os bolsos cheios.
Enquanto isso, tudo aquilo em que o brasileiroo acredita e aquilo que defende é jogado no ralo por essa política externa indecente.
Até quando?