Desemprego e inflação levam 400 mil para a extrema pobreza. Avanço maior é em São Paulo
O Brasil conseguiu acabar com a fome, mas ainda precisa lutar contra a miséria. Pouco depois de o Fundo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) informar que o percentual de pessoas com insegurança alimentar aguda chegou a 1,7%, percentual considerado erradicação, a miséria parou de cair no país. Após uma década de queda sistemática da pobreza extrema, os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostraram que ela passou de 6,1% para 6,2% da população no último ano. Em que pese ser considerada estabilidade estatística pelos pesquisadores, 422 mil pessoas foram empurradas para a miséria e passaram a integrar um grupo que hoje soma 12,531 milhões.
Para Andrezza Rosalém e Samuel Franco, pesquisadores do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), o que explica a interrupção da melhora para os mais excluídos da sociedade é o mercado de trabalho. Enquanto na média, as taxas de desemprego estão em mínimas históricas (em torno de 6%), para os mais vulneráveis, a estagnação da economia já pesou. A pedido de “O Globo”, os pesquisadores traçaram um mapa de onde estão e quem são os miseráveis no país. A taxa de desemprego dos mais pobres subiu de 25,5%, em 2012, para 30,4%, em 2013. Enquanto 43,8% dos trabalhadores no país são informais, entre os miseráveis essa é a regra: 96% vivem sem proteção social.
Outra diferença foi a renda, que, na média, ainda acumula crescimento real, mas recua entre aqueles em pobreza extrema. Entre os miseráveis que trabalhavam, o salário caiu de R$ 129,7 para R$ 123,9. Nessa parcela, o orçamento das famílias era composto sobretudo por outras rendas (transferências, como Bolsa Família), e o rendimento no domicílio dividido pelos moradores era de R$ 58,5, em 2013, abaixo dos R$ 62,2, de 2012. O grupo dos 5% de brasileiros mais pobres viu sua renda encolher 11%.
— Para quem estava ocupado, houve perda de poder de compra afetada pela inflação. Essa população é mais vulnerável e sente de imediato o impacto da desaceleração econômica — diz Franco.
Os pesquisadores consideram miserável quem tem renda de até R$ 123, um patamar acima daquele usado pelo governo, de R$ 70, em 2013. Cada pesquisador trabalha com uma linha de extrema pobreza. Segundo Andrezza e Franco, apesar de o Nordeste concentrar mais da metade da pobreza extrema de todo o país, 56,5%, houve queda da miséria na região. Em 2012, 59,2% estavam nessa condição. A Região Norte também teve recuo de 14,2% para 13,8% na participação de extremamente pobres no país.
Segundo o trabalho de Andrezza e Franco, o maior aumento dos miseráveis ocorreu na Região Sudeste, que respondia por 18,3% dos extremamente pobres do país e, agora, concentra 20,6% do grupo. Das 422 mil pessoas que entraram na linha da miséria no ano passado, 282 mil estavam, sobretudo, na área urbana de São Paulo.
Os miseráveis têm acesso precário a serviços, mas aumentaram a sua escolaridade. Ao contrário da mãe, Janecleide Fernandes, de 18 anos, sabe ler e estudou até a quinta série. Isso não impediu a moradia precária no Recife. Ela mora com o filho Leonardo, de 3 anos, numa comunidade quase invisível, fincada em pleno manguezal, entre duas pontes que dão acesso aos bairros do Pina e Boa Viagem, na Zona Sul da capital.
As casas têm tábuas irregulares, que margeiam becos estreitos sobre pedaços velhos de madeira, sem direito a banheiro, água encanada nem ligação oficial de luz elétrica. Para se ter acesso à comunidade, é preciso escalar uma mureta da ponte e subir uma escada enterrada entre a lama e as “ruas” de madeira que dão acesso às palafitas onde moram catadores de sururu, marisco disputado por restaurantes da capital. A casa de Janecleide tem dois pequenos cômodos, não possui latrina. Os moradores carregam baldes d’água tirada de uma mangueira comum.
— Aqui é assim, cada um no seu chiqueiro. Quem tem filho, tem que ter o seu lugar para cuidar dele — diz ela, que trabalha desde os 12 anos de idade e ganha hoje menos de meio salário mínimo por mês para a família.
O fato de a miséria ter parado de cair em 2013 não significa retrocesso. Ao longo dos últimos dez anos, a pobreza extrema caiu ano após ano. Em 2004, eram 15,4% de miseráveis. No ano passado, a taxa era de 6,2%. Para estudiosos, com um patamar menor de miseráveis, fica cada vez mais difícil encontrá-los. O governo estima que 150 mil famílias ainda precisam ser alcançadas pelos programas sociais e lançou uma busca ativa para tentar localizá-las.
Para Sonia Rocha, especialista em desigualdade e pobreza do Iets, e que utiliza outra linha de pobreza extrema, a maior dificuldade está no combate à miséria na área rural. Pelos cálculos da economista, um quinto da população do Maranhão rural é miserável. Ela lembra que a proporção de pessoas vivendo na extrema pobreza na área rural do país é o dobro da média para todo o Brasil. Também pelos cálculos da economista, houve aumento do percentual de miseráveis de 4,1%, em 2012, para 4,7% (sem o Norte rural), no ano passado, a maior alta desde 2008. A pesquisadora lembra que a pobreza extrema está ligada à presença de crianças na família: em 2013, 40% dos miseráveis tinham até 14 anos.
— As políticas de transferência do governo são boas, mas não são capazes de zerar a miséria. Quando chega nesse nível muito baixo, é preciso, além da política de renda, associar outras políticas — afirma ela, que defende um programa de creches nas áreas mais carentes.
Aumento dos sem renda influenciou
O economista Rafael Osório, assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), chegou a antever a superação da miséria em 2013, com a complementação de renda para famílias assistidas pelo Bolsa Família. Em seus cálculos, Osório viu um aumento em 2013 no total de miseráveis. Para ele, o principal fator foi o maior número de pessoas que se declararam com “renda zero”. Este grupo inclui os que recebem pelo trabalho apenas moradia, alimentação, roupas, vales-refeição ou transporte e medicamentos. Não são consideradas as transferências de renda. Quando isso ocorre, a renda média de quem está abaixo da linha de pobreza é “puxada” para baixo.
— Estamos estudando a Pnad para entender o que aconteceu. O baixo crescimento e a inflação ajudaram (a aumentar o total de miseráveis), bem como o fato de que o salário mínimo, por estar em patamar já bastante elevado, só tem impacto para as linhas de pobreza mais altas — diz Osório.
O Ministério do Desenvolvimento Social disse que não se pronunciaria sobre os dados do Iets porque não teve acesso à pesquisa completa.
Fonte: O Globo
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