Um dia desses estive na difícil posição de palestrar para um grupo de vestibulandos sobre um tema que não aparece com seu próprio nome nas provas do Enem, e mesmo da PUC, mas está em toda parte: a inflação.
[su_quote]Não há nada de novo nesse assunto de dominância fiscal, apenas mais clareza sobre como a política fiscal esmaga a política monetária[/su_quote]
Recomendo fortemente ao leitor a tentativa de explicar um tema complexo, da sua especialização, a adolescentes repletos de hormônios e tensão pré-vestibular: não há teste mais rigoroso sobre as suas convicções. Recomendo também o amplo recurso às perguntas retóricas, e logo no início, uma receita ótima para quem prefere aprender por si mesmo.
A inflação é: (a) um aumento generalizado nos preços; ou (b) a perda do poder de compra da moeda?
Se você escolheu a opção (a), está diante de um fenômeno social complexo, pois é preciso pensar como é que o padeiro se comunica com o barbeiro e com os produtores de tomates, pepinos, aço e computadores, e também com as companhias aéreas e restaurantes, para todos aumentarem seus preços mais ou menos na mesma velocidade.
Talvez eles leiam os mesmos jornais, de onde aprendem sobre os andamentos da moeda e do crédito público, pois afinal, se existe uma única coisa a unir esses personagens da vida produtiva brasileira, é que todos querem moeda em troca de seus bens e serviços. A moeda é a “cafetina universal”, para usar uma expressão de Shakespeare, que Marx gostava muito de repetir.
É claro que isso nos leva à opção (b): é claro que a inflação também é a perda de poder aquisitivo da moeda, as duas alternativas estão corretas, um velho truque docente, muito usado nos vestibulares.
O alívio veio de ninguém perguntar o que exatamente é a moeda, pois, com os empregos que tive, jamais poderia hesitar nessa resposta. Na faculdade, e mais para o fim, os alunos compreendem e admiram os professores que compartilham suas dúvidas e inquietações. Não é o que se observa no ensino médio, onde as certezas são absolutas e as provas, de múltipla escolha.
Seria chocante se dissesse aos meninos que o papel-moeda é uma tecnologia de pagamento que tende ao desuso, ao menos desde os anos 80, e que os contadores dos bancos centrais desse planeta não sabem ao certo se a moeda emitida nessas instituições tem a natureza de uma dívida.
Nos cruzeiros de 1942 estava inscrito nas cédulas que “se pagará ao portador desta a quantia de …”, e vinha escrito o valor da cédula. Uma promessa pagável com o próprio instrumento, uma estranha redundância. A inscrição depois foi substituída por “valor legal” e, anos mais tarde, por razões hoje compreensíveis (talvez um desabafo), os dizeres passaram a ser “Deus seja louvado!”
Veja no balanço do Banco Central a conta “meio circulante”, que diz respeito ao papel-moeda em circulação: o saldo é R$ 196 bilhões para setembro/2015, tratando-se claramente de um passivo não exigível, embora não pertença ao patrimônio líquido. Veja, agora, a estatística para a “Dívida Líquida do Setor Público” e seus componentes. Lá está a “base monetária”, dentro da qual está o “meio circulante”.
Bem, o papel-moeda não é bem dívida do Estado, e esta, por sua vez, quando encarnada em títulos da dívida pública, ou dívida mobiliária, parece moeda, daí se
falar em “quase moeda” pois, afinal, é muito líquida e é com ela que o Estado paga suas contas.
Não seria razoável pensar a moeda e títulos da dívida pública como uma coisa só, apenas expressões diferenciadas do “crédito público”, um atributo intangível que pulsa conforme a qualidade do governo?
Acho muito apropriado definir o meio circulante como uma espécie de ação preferencial ao portador, emitida pelo Estado, em pequenas denominações e que o Banco Central distribui pela rede bancária em troca de papel- moeda velho e, às vezes, em troca de outros tipos de dívida do Estado.
Outra maneira de ver é tomar a moeda como dívida, mas na forma de um instrumento perpétuo e sem juros. Visto assim, é fácil ver que o Estado preferirá sempre se financiar com esse tipo de obrigação. Porém, a sociedade necessita muito pouco desse instrumento e cada vez menos. A ideia de “rodar a guitarra” e abusar da emissão desses papéis, ou de moedas metálicas, está cada vez mais obsoleta, pois a demanda é muito limitada. A guitarra do século 21 é a dívida.
Aqui no Brasil, desde 2011 o TCU obriga o Banco Central a divulgar o tamanho de suas receitas decorrentes do poder de emitir moeda. Foram R$ 12,7 bilhões em 2014, equivalentes a 0,23% do PIB, já deduzidos os custos de produção desse acréscimo (R$ 487 milhões). Não é muito e não se vislumbra como isso possa crescer.
Pois bem, diante dessas definições, a ideia que o papel-moeda vai acabar, por conta do plástico e do tag, para não falar de milhas ou do bitcoin, parece especialmente grave diante da ansiedade recente em torno do monstro que dá título a este artigo. Na presença dessa criatura alienígena recém-chegada, segundo se diz, o governo não terá alternativa senão imprimir vastas quantidades de papel-moeda para pagar suas contas, inclusive a dívida pública.
Mas como se dará tal coisa se o papel-moeda está destinado à extinção?
Uma resposta meio prosaica foi dada por ninguém menos que Machado de Assis, numa crônica de 1896, a propósito das previsões de um espírita, segundo as quais novas tecnologias permitiriam que o papel-moeda fosse abolido (!). Se isso ocorrer, segundo diz o bruxo, “não haverá finanças, naturalmente, não haverá tesouro, nem impostos, nem alfândegas secas ou molhadas. Extinguem-se os desfalques andam tão a rodo que a gente de ânimo frouxo já inquire de si mesma se isto de levar dinheiro das gavetas do Estado ou do patrão é verdadeiramente delito ou reivindicação necessária.”
De fato, a vida ficaria muito mais difícil para a bandidagem na ausência de dinheiro em espécie, pois tudo transitaria por bancos deixando rastros para os agentes da lei. Foi assim que pegaram o doleiro Youssef, por exemplo, e se desenrolou o novelo do “petrolão”.
Quanto ao financiamento do Estado sob dominância fiscal, todavia, não vamos escorregar na nossa ansiedade: é tudo uma questão de preço. Pague-se mais juro que o povo aceita mais dívida, e esse tem sido o caminho percorrido faz muitos anos. O Brasil não tem a maior taxa de juros do mundo porque seus poupadores são campeões mundiais de ganância, mas porque tem o Estado mais endividado do mundo em proporção à riqueza do país. O monstro não é de outro planeta, nem é desconhecido: mora em Brasília há muitos anos e vinha emagrecendo até 2008. A partir daí, Dilma Rousseff, seguindo conselhos econômicos da pior espécie, resolveu terminar a dieta, e a criatura recomeçou a crescer.
Quanto mais dívida, mais juros, simples assim. Não há nada de novo nesse assunto de dominância fiscal, apenas mais clareza sobre como a política fiscal esmaga a política monetária, o que é um grande progresso.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 25/10/2015.
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