Uma cama desmontada, uma geladeira velha, uma televisão com prestações atrasadas. Em cima do sofá de dois lugares, desfiado por um gato de estimação, uma cômoda e um colchão de viúvo. Tudo empilhado na caçamba de um caminhão, junto as caixas que guardam roupas, livros e coisas difíceis de abandonar, como um vestido com o cheiro da mulher falecida e fotografias da vida toda. O homem de cabelos brancos vai embora da Cidade Alta, sem intenção de voltar.
A cena é de um êxodo silencioso que se pôs em marcha na cidade. São pessoas que estão deixando suas casas, muitas vezes na favela onde nasceram, para fugir da violência. Em cada beco onde o terror virou rotina, postes e paredes estão tomados de anúncios de “vende-se” e “aluga-se”, com uma observação recorrente: “aceito proposta”.
Na Cidade Alta, foi na semana passada que o aposentado empacotou tudo que tinha e se mudou para o interior do estado. Deixou para trás um apartamento de dois quartos na Rua Ponto Chique, comprado há quase dez anos, em um prédio de cinco andares cravejado de balas. Nas paredes do edifício, leem-se pichações religiosas com dizeres como “até aqui nos ajudou o Senhor”, feitas a mando da facção dominante, bandidos que se dizem “o exército do Deus vivo”. No último episódio da guerra entre traficantes no conjunto habitacional de Cordovil, dois tiros entraram na sala do aposentado, um deles na altura de sua cabeça.
— Quando seus vizinhos começam a se trancar em casa, é hora de partir — diz o senhor, que não pode se identificar por ainda ter parentes na região. —Minha casa valia R$ 120 mil há poucos anos. Hoje, as pessoas querem pagar R$ 40 mil. Minha vontade era continuar, mas estou ficando deprimido. Meu filho me implorou para sair.
Casas vizinhas
O medo que o tirou de casa se espalha. Segundo dados do Fogo Cruzado, aplicativo da Anistia Internacional que contabiliza confrontos, foram notificados 87 na Região Metropolitana do Rio apenas na primeira semana de maio, uma média de 12 por dia. Nesse período, 25 pessoas morreram baleadas — 3,5 por dia — e 18 ficaram feridas. Entre janeiro e abril, a Anistia informou 1.493 tiroteios e uma média diária de quatro mortos (488 no total).
Quem sai de casa alega que a causa principal é a falta de segurança. Mas não é o único motivo: o desemprego também castiga a capital do estado, que perdeu sozinha 80% dos 64 mil postos de trabalho fechados no Brasil no primeiro trimestre deste ano. Ainda não existem dados ou pesquisas sobre quantas pessoas se mudaram e para que lugar foram, mas basta entrar numa favela em que os tiros sejam frequentes para ver o sobe e desce de caminhões, especialmente nos fins de semana.
Com braços largos e tatuados que saltam para fora da camisa regata, o caminhoneiro Maurilan Cordeiro olha desconfiado para um de seus três ajudantes. Pergunta se há “algum problema”. O outro resmunga que torceu o pé. “Se quiser pode ir embora, te pago metade do combinado”, responde, sem olhar para o funcionário. Era o primeiro serviço naquele dia e, depois, eles teriam mais um. Há 20 anos no mundo dos fretes, Maurilan anota quantas mudanças faz na Cidade Alta. Nos últimos três meses, foram 96. Algumas famílias foram para bairros próximos e não precisaram trocar as crianças de escola. Outras se mudaram para São Paulo, Belo Horizonte, Vitória, Salvador, Corumbá… Todas saíram em busca de paz.
— O que mais tem aqui é casa vazia. Tenho feito de cinco a dez mudanças por semana. O movimento aumentou uns 200% este ano — conta Maurilan, chamado por muitos de Murilão.
Ele cobra R$ 300 por um frete até o Centro. Até Jacarepaguá, são R$ 800 e, para São Paulo, R$ 1.600.
— Trabalho muito, mas com tristeza. Cada mudança tem uma história. Às vezes, a pessoa acaba num lugar pior, depois volta. Esta semana mesmo vou trazer uma moça que saiu daqui para a Ilha do Governador e foi assaltada quatro vezes em dois meses. Mas, a cada um que volta, dez vão embora.
E se cada mudança tem uma história, cada história, um drama. O de uma secretária de 30 anos nascida e criada no Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, narra a esperança de quem acreditava na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Mas ela viu uma boca de fumo ser instalada na porta de sua casa, com sessões de tortura em ladrões no meio da noite. Há pouco tempo, quando voltava para casa com seu filho de 8 anos, um dos bandidos cismou que ela estava filmando a boca. Os traficantes olharam todas as fotos e vídeos do celular.
— Tem criança de 9 anos entre os bandidos. Meu filho já estava sabendo o calibre das armas pelo som do tiro. Fiquei com medo do que poderia acontecer com ele, já perdi um irmão que virou traficante — conta a secretária, que trabalha no Leblon e conseguiu alugar um conjugado na Cruzada São Sebastião por cerca de mil reais. — Aqui tem tráfico também, mas nem parece: em um mês, ainda não ouvimos tiro algum.
Rotina alterada
Mudar não é fácil. O filho da secretária ainda não contou aos amigos do morro o motivo que o levou a sair: tem vergonha de dizer que foi por causa da violência, afinal de contas, os colegas continuam lá. Quando soube do conjugado na Cruzada, no fim de março, a mãe pensou que havia elevador no prédio. Mas são apenas escadas nos dez blocos de 945 apartamentos, com edifícios de seis andares. Eles moram no último.
O comportamento das pessoas também é diferente daquele que a pequena família de duas pessoas estava acostumada. No morro, uma única bola de futebol faz a alegria de 50 crianças. No asfalto, o menino só conseguiu jogar depois que a mãe comprou uma redonda para ele. Apaixonado por futebol, em breve o garoto começará a treinar na Associação Atlética Banco do Brasil (AABB), clube na Lagoa que tem a saída dos fundos voltada para a Cruzada São Sebastião.
— Eu descia o morro com medo, tinha que ser muito rápido, porque o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) entrava na favela quando estávamos indo para a escola. Chorei quando minha mãe falou que íamos sair. Tenho sete amigos no morro. Aqui, por enquanto, só tenho um — conta o menino, antes de dizer que está de castigo por ter jogado bola até a noite na semana passada.
Em estado de guerra desde fevereiro — quando teve início a polêmica instalação de uma torre blindada na Praça do Samba, região da Alvorada, que terminou com dez mortos em uma semana —, o Complexo do Alemão certamente é uma das regiões da cidade de onde mais pessoas foram embora. A vendedora X. morava na Rua 2, onde os tiros são tão intensos que o dono de uma padaria construiu um bloco de concreto na porta, espécie de bunker improvisado que as balas já destruíram.
— Minha casa era a mais perfurada da rua. Eu não tinha a opção de morar fora da favela. Depois que me casei, meu marido e eu viemos para a Estrada Velha da Pavuna. Quando tem tiroteio no Alemão, escuto de longe. Minha mãe me liga sempre que os tiros começam. Ela tem vontade de sair também, mas mora junto com meus três irmãos. Seria impossível pagar uma casa no asfalto — afirma X., que não visita a mãe há aproximadamente um mês por causa dos confrontos quase diários entre policiais e traficantes.
A gota d’água que a fez procurar outro lugar foi a última festa de réveillon, quando todos no Alemão estavam na rua e um intenso tiroteio começou. Os transformadores de luz explodiram com os tiros, e as pessoas ficaram no escuro, com as ruas cheias do óleo escuro que escorria dos equipamentos. Um vizinho de X. tinha acabado de reformar a casa.
— Deu pena. A casa virou uma peneira, toda cheia de furos. Naquele dia, ele perdeu micro-ondas, geladeira… Até a cama ficou repleta de buracos. Foi quando decidi ir embora — recorda.
Todos que se mudaram têm medo. Além de parentes, amigos continuam morando nas favelas, e muitos são proprietários de imóveis nos locais. Uma ex-moradora da Cidade de Deus saiu desesperada ao descobrir que o próprio filho estava começando a se envolver com o tráfico. O menino de 15 anos parou de estudar em dezembro, após repetir de ano pela segunda vez em um colégio particular de Jacarepaguá que a mãe pagava com esforço — metade de todas as faxinas do mês iam para a mensalidade escolar.
— Em casa, ficava mais na cozinha do que na sala, onde os tiros batem. Só relaxava quando meu filho chegava. Ele estava começando a se envolver, tinha virado olheiro. Tem três meses que a gente saiu, pela graça de Deus — afirma a mãe, que se mudou para uma rua de acesso a uma favela de Ricardo de Albuquerque, onde o tráfico também dá as cartas.
Até no Santa Marta, primeira favela com uma UPP instalada, em 2008, há pessoas indo embora, apesar de ainda ser grande a procura por casas na favela, no coração de Botafogo. Um produtor cultural se mudou há poucos dias por vários motivos. Entre eles, a volta do tráfico ostensivo.
— É triste ver de novo uma criança olhando os traficantes e querendo ser igual a eles. Pensei que isso iria acabar, mas me enganei — lamenta.
De volta para o nordeste
No Complexo do Alemão, ao se apresentar, Seu Elias entrega um cartão de visitas: “De volta para minha terra — mudanças interestaduais”. Nascido na Grota, uma das comunidades do conjunto de favelas, ele tem 60 anos de experiência com frete. Começou ajudando o pai, aos 10, subindo material para a construção de novas residências.
— Havia 40 casas de estuque na Grota quando eu era criança — lembra.
Nos pontos extremos do complexo, nas partes mais perigosas e de difícil acesso, só ele encara o serviço com sua carreta preta que “parece o caveirão”. Enquanto Elias dirige sem pressa pelos becos, um ajudante vai no alto do caminhão com um cabo de vassoura, erguendo o emaranhado de fios que, às vezes, acabam se rompendo no trajeto.
— Apesar de parecer o caveirão, todos me respeitam. Só trabalha aqui quem é conhecido da comunidade. Tem muita gente saindo, principalmente as pessoas que moram lá em cima. Muitos voltam para o Nordeste. Este ano já fui para Bahia e Pernambuco. Na semana que vem, vou para o Maranhão. Um pedreiro desistiu de tudo aqui, já mandou a família e só está terminando um serviço para ir embora — conta ele, que cobrou R$ 6 mil pelo percurso de 3 mil quilômetros. — É triste ver as pessoas partindo. A gente branqueia os cabelos e não consegue alcançar nossos objetivos nessa vida.
Ao se preparar para ir embora no caminhão de Elias, uma manicure de mudança para Rio das Ostras pede ao caminhoneiro que a espere um instante na Estrada do Itararé, onde há um bar na esquina. É hora do almoço, o lugar está cheio. Ela vai até o banheiro e para na porta, onde um amigo do morro escreveu a seguinte poesia: “A noite chegou… / Sair pra brincar / Na chuva / Sonhar em descer / A ladeira / Num barco de papel”. Ela tira uma foto do poema, se emociona e vai embora. Diz que não volta mais.
Fonte: “Extra”
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