Este artigo foi motivado por um convite do Instituto Singularidades para me pronunciar a respeito da polêmica instaurada no Estado de Alagoas a partir da aprovação da Lei Escola Livre, suplantando um veto do governador daquele Estado. O assunto tem sido objeto de iniciativas em outros estados e portanto, é de interesse nacional. Se o objetivo é promover um debate, vamos a ele.
Cabem duas preliminares: vivemos um momento particularmente crítico da sociedade brasileira, com um grau praticamente nulo de debate de ideias e um grau elevado de intolerância: instaurou-se um maniqueísmo, a turma do bem e, quem dela discorda, é do “mal”. A história nos mostra que essa polarização sempre leva ao totalitarismo e à supressão “do outro lado”. Só o respeito, tolerância e diálogo podem evitar essa catástrofe.
Segunda preliminar: não acredito que leis mudem a sociedade – muito menos a educação – e isso é particularmente verdade no Brasil, onde as leis são cada vez mais usadas para fazer prevalecer interesses corporativos de toda espécie e que, por essa mesma razão, não objetivam promover a equidade ou o bem comum. Portanto, independentemente de seu conteúdo, não me parece que o tema deva ser objeto de lei.
Isso posto, cabe entrar no mérito do que estamos falando: a natureza, função e limites da escola. O assunto não é novo. A instituição escolar sempre foi objeto de intenções ideológicas marcantes. No alvorecer da Revolução Industrial a escola formalizada para as massas surge para atender as necessidades do setor produtivo – ler, escrever e contar tornaram-se instrumentos essenciais para fazer a sociedade funcionar. No século XIX a escola é instada a promover a língua dominante e a unidade das nações que se consolidaram como tal.
Na tentativa de manter a unidade do conhecimento e de preservar o espaço escolar para a transmissão da cultura a partir de determinada visão de mundo – surgiram propostas como as do Cardeal Newman (The idea of a University) ou a Paideia, de Werner Jaeger. O ensino confessional, especialmente das escolas católicas, pelo menos até meados do século XX, tinha como objetivo central preservar o espaço para uma educação inserida no contexto de sua visão de mundo. Se o leitor preferir pode chamar a isso de “visão de mundo”- e, certamente, umas serão melhores que outras. Mas não deixam de ser “visões de mundo”. Não há escola sem visão e sem a visão dos professores. Mas vale lembrar: não há escola sem espaço para a aprendizagem e o exercício do espírito crítico.
Em suas origens, a escola pública, seria laica, aberta com espaço para a convivência republicana, respeitosa das várias tradições, inclusive religiosas e, na sua intenção, seria capaz de abrigar e respeitar diferentes visões de mundo. Em vários países do mundo o ensino religioso – confessional ou não – é parte do currículo escolar. E, em todos os países democráticos, a escola pública nunca se definiu como monopolista, deixando espaço para opções das famílias por escolas confessionais ou de outras orientações. Já em países totalitários ou fundamentalistas a escola é vista como um instrumento-chave para a doutrinação religiosa ou ideológica e é baixa a margem de tolerância para a liberdade de pensamento e expressão, dentro e fora da escola.
Apesar de suas intenções, a escola pública não ficou isenta de influências ideológicas – pois elas são inevitáveis. Permitir a entrada de alunos com brinco? Com máscara da Klu Klux Klan? Com suástica? Com o véu islâmico – símbolo da opressão às mulheres? Tudo isso implica posicionamento e decisões – nunca neutras. O ensino da história, em particular, sempre refletiu a visão de cada país em relação aos demais – a revista “Asterix” é um depoimento eloquente do etnocentrismo gaulês – mas se aplica a qualquer país. Dentro de cada país,heróis podem tornar-se vilões, nem Tiradentes escapou desse vai-e-vem. A escola e o ensino da história repercutem a cultura que os cerca. Na virada do século XX para o XXI a escola – repercutindo a sociedade e o apelo da mídia – entrou acriticamente na questão dos usos e abusos da linguagem – frequentemente caindo na censura e no extremo do politicamente correto – tema de livro imperdível de Diane Ravitch (“The language police”).
Dentre as disciplinas, geografia e história são os alvos preferidos de quem acredita ser possível manipular a mente dos alunos. Mas também esteve presente na etnomatemática e, no ensino médio, em disciplinas como sociologia e filosofia. Algumas das ideias pós-modernas se encastelaram sobretudo em disciplinas como língua portuguesa – como refletido nas correntes dos “estudos culturais”, nas ideias subjacentes aos temas transversais e sobretudo na substituição do espírito crítico pelo “o que você acha”? Os requisitos estabelecidos para a redação do Enem refletem essa tentativa de controle ideológico. Portanto, não estamos falando de nada novo. Também não surpreenderá o leitor a informação de que os livros didáticos, especialmente das disciplinas supramencionadas, vêm apresentando um viés ideológico marcante nas últimas décadas – e isso decorre de um esquema cuidadosamente articulado e nada sutil em torno do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Mas o esquema vai mais além pois, como bem observa Ravitch, a censura externa se converteu em autocensura.
Portanto, reconhecer que a escola brasileira aderiu ao politicamente correto e está sendo submetida a uma determinada visão ideológica de mundo não constitui novidade. Como também não constitui novidade que esta é uma tendência inexorável – exacerbada pela falta de um consenso básico sobre o que é a escola e qual é sua função, e de mecanismos de equilíbrio, de “checks and balances” dentro e fora da escola. Tudo isso, ademais, se dá num contexto de empobrecimento da qualidade intelectual do corpo docente – o que o torna mais vulnerável à pressões de grupos vocais e articulados para o conformismo. A falta de debates no país e o pragmatismo do editores de livros e a autocensura dos autores não ajuda a contrabalançar a avalanche.
Todos temos nossos pontos de vista, tirar pontos de vista e ideologias da escola é missão impossível. Mas, de outro lado, a escola – pelo menos na sua concepção histórica – não deveria tornar-se palco para doutrinação, é lugar para formar pensadores críticos. Numa visão mais benigna, as teses do Movimento da Escola Livre poderiam ser vistas como uma tentativa de chamar a atenção da sociedade para alguns princípios básicos da função da escola e da relação docente que vêm sendo violados. A ideia de que o professor de escola é um livre docente – no sentido da cátedra universitária – é um caso típico de “misplacement of concepts”, de que nos falava com propriedade o saudoso Guerreiro Ramos. Constitui grave violação dos direitos da criança e do adolescente, que, especialmente nas séries iniciais, ainda não possui as ferramentas conceituais suficientes para lidar com diferentes pontos de vista. Esse é um processo que leva tempo, e muito exercício intelectual. Temas como a ideologia de gênero é um procedimento cultural de risco, talvez consequência inevitável numa sociedade que abraçou de maneira irrefletida o pós-modernismo.
O que precisa ser discutido, e retomado, é o entendimento a respeito da função da escola e da responsabilidade do professor – especialmente o professor do ensino fundamental. No ensino médio é difícil acreditar que as tentativas de ideologização do ensino tenham qualquer outro efeito senão o de fortalecer o cinismo dos jovens em relação aos adultos que tentam modelar a sua cabeça. O mesmo se dá com a tentativa de usar a redação do Enem para “fazer a cabeça dos jovens”. Causa preocupação a aprovação de uma lei que poderia criar uma polícia dentro das escolas. Mas causa igual preocupação afirmações como as expressadas em Sergipe, de que os pais “poderiam interferir no fazer pedagógico das escolas e questionar o que é ensinado em sala”. Se os pais não podem fazer isso – e a escola pode fazer qualquer coisa que quiser – então pelo menos os pais deveriam poder escolher outra escola. E isso, por sua vez, remete à questão dos currículos, do que deve ser ensinado o do papel central da formação do pensamento crítico. Nesse aspecto a postura do MEC em relação à redação do Enem e de algumas provas do Enade é condenável.
Não se muda a sociedade por decreto. E também não se muda por meio de cursos de ética – ainda mais se ministrados pelos mesmos professores que participam do processo de promoção de um pensamento hegemônico. A escola pode transformar a sociedade devido à força libertária das ideias e do pensamento – mas aquela é e sempre será um reflexo desta. A escola só poderá cumprir sua missão se tiver condições de preparar as pessoas para pensar com a própria cabeça, para exercitar o espírito crítico. O anticlerical Voltaire se vangloriava de ter sido aluno de uma escola jesuítica, onde aprendeu a pensar – e não o quê pensar. Quem examina o currículo das “escolas do campo” terá uma clara noção do esquema – diabólico? – dos que acreditam que podem e devem fazer a cabeça dos alunos.
Está na hora de reler e discutir pensadores como Hanna Arendt, Olga Pombo, Inger Enkvist. Com esse convite, concluo citando um pequeno texto retirado do livro de Arendt “A condição humana”:
«Com a expressão ‘vida ativa’, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação. (…) O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano (…). A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana (…). O trabalho produz um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. A condição humana do trabalho é a mundanidade. A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente ‘a’ condição (…) de toda a vida política.»
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