As atitudes erráticas do presidente Lula nesses últimos dias de campanha eleitoral denotam que os estrategistas da candidata Dilma Rousseff estão tentando digerir as informações contraditórias que chegam com as últimas pesquisas, mostrando uma perda contínua de votos em 15 dias. Ao mesmo tempo em que recuou nos seus ataques à imprensa em determinado momento, diante da constatação de que o clima de animosidade por ele deflagrado estava provocando reações negativas em setores da sociedade, o presidente retornou ao início da campanha, quando valorizar o passado de guerrilheira de Dilma era importante para garantir o apoio da esquerda do partido à neófita política escolhida para ser a “laranja” eleitoral de Lula.
Se os ataques aos meios de comunicação para tentar desqualificar as denúncias que provocaram a demissão da chefe do Gabinete Civil Erenice Guerra produziram inicialmente efeito negativo no eleitorado mais escolarizado e de maior renda, esse efeito hoje já se espalha por todos os setores da sociedade, segundo a mais recente pesquisa do Datafolha, demonstrando que as questões morais e a radicalização política afetam diretamente o setor do eleitorado mais preocupado com o equilíbrio institucional do país.
O elogio da radicalização política que Lula fez no comício de segunda-feira em São Paulo, exaltando o lado guerrilheiro de sua candidata, também incomoda essa classe média, especialmente a ascendente.
O objetivo imediato do presidente parece ser conter uma debandada de parte do eleitorado de esquerda que, desiludido com mais uma leva de escândalos envolvendo a gestão do PT, e mais uma vez no Gabinete Civil no Palácio do Planalto, estaria engrossando as fileiras da candidata verde Marina Silva.
É interessante constatar como a questão moral, que parece nunca atingir o presidente Lula diretamente, alcança inapelavelmente o PT nas últimas campanhas eleitorais.
Em 2006, quase que Lula não encontra ambiente político para se recandidatar por conta do mensalão. No auge do caso, em 2005, a popularidade do presidente caiu vertiginosamente, e as repercussões chegaram até a campanha no ano seguinte.
O caso dos “aloprados” veio apenas relembrar o escândalo do mensalão na reta final da campanha de 2006, provocando a ida da disputa para o segundo turno. Mais uma vez Lula recuperou-se do baque e conseguiu levar sua campanha a uma vitória vigorosa, ainda mais que o candidato tucano Geraldo Alckmin acabou tendo menos votos no segundo que no primeiro turno.
Agora, quando o marasmo da campanha eleitoral parecia levar a uma vitória tranquila no primeiro turno de Dilma Rousseff, dois novos escândalos trouxeram os debates políticos para um campo menos amorfo, fazendo com que setores da sociedade acordassem para o debate político. O presidente Lula escolheu a maneira errada de tentar desqualificar as denúncias contra Erenice Guerra, que pegam diretamente em Dilma Rousseff, sua protetora.
Ao levar para os palanques críticas aos meios de comunicação e garantir à população que as acusações eram mentirosas, Lula incentivou seus “aloprados” a desferir uma guerra contra a imprensa dita tradicional, e uma resposta imediata a favor da liberdade de expressão e da democracia foi articulada por representantes da sociedade civil do calibre de D. Paulo Evaristo Arns e Hélio Bicudo.
O manifesto, que protesta contra diversos indícios de autoritarismo do governo, inclusive a quebra de sigilos fiscais de pessoas ligadas ao candidato oposicionista José Serra, teve uma aceitação alta da sociedade e já tem mais de 50 mil assinaturas pela internet.
A confirmação, ontem, de que também o sigilo bancário do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge Caldas, foi quebrado no Banco do Brasil remete a métodos utilizados anteriormente por membros do governo contra o caseiro Francenildo Pereira, que teve seu sigilo bancário na Caixa Econômica violado a mando do presidente da instituição na ocasião, Jorge Matoso, para conseguir dados que, supunha, poderiam ajudar na defesa do então ministro da Fazenda Antonio Palocci.
O conjunto da obra é nada edificante para o PT e demonstra publicamente como o aparelhamento da máquina estatal por sindicalistas e filiados ao PT e a partidos aliados ao governo significa, na prática, muito mais que a simples ineficiência do Estado, uma ameaça para os cidadãos. É esse quadro que está mexendo com os votos do eleitorado, em todas as regiões do país e em todas as estruturas sociais.
A candidata oficial, Dilma Rousseff, ainda vence, mas está vendo sua vantagem sobre a soma dos dois outros concorrentes ser reduzida a cada dia nas últimas duas semanas.
Já está caracterizada uma tendência de queda de sua candidatura, ao mesmo tempo em que a candidata do Partido Verde, Marina Silva, tem uma ascensão na mesma proporção, começando a ganhar a simpatia dos indecisos e partindo para ganhar fatias do eleitorado que hoje está com Dilma.
Marina acredita que a onda verde seja forte o suficiente para levá-la para o segundo turno, superando o candidato tucano José Serra.
Para tanto, porém, terá que arrancar do eleitorado de Dilma os pontos necessários, o que a levará a atacar mais fortemente a candidata oficial no último debate, amanhã, na TV Globo.
A reta final de uma eleição que até agora é a mais modorrenta dos últimos tempos tem ingredientes para ser muito excitante.
A diferença de Dilma para Serra ainda é muito grande, mas a subida de Marina pode levar o tucano ao segundo turno, frustrando o eleitorado que a escolheu.
Parte desse grupo é de petistas desgostosos que podem, porém, retornar ao seio governista, como aconteceu em 2006.
Se realmente conseguir ir para o segundo turno nessas condições, Serra terá que fazer um amplo acordo com o Partido Verde para viabilizar a vitória.
Terá ainda a seu favor uma mudança de situação nos dois maiores colégios eleitorais, São Paulo e Minas.
Se, como tudo indica, a eleição para governador se resolver no primeiro turno a favor dos tucanos nos dois estados, a máquina governamental dos estados não terá constrangimentos para ajudar o candidato do PSDB, ao contrário do que acontece neste momento.
Fonte: Jornal “O Globo” – 29/09/10
LULA, O MITO.
A corrupção, a impunidade, a violência e o desgoverno são reveladores do estado de anomia do país. Os diferentes escândalos, como o do “mensalão”, não atingiram Lula.
Por que é blindado? Como um governante despreparado como ele chegou ao poder?
A resposta pode parecer simples: porque Lula é um mito.
Ao longo deste estudo, vamos demonstrar que é favorecido por uma herança cultural arcaica, submersa no inconsciente coletivo da sociedade brasileira.
Encarna o arquétipo do herói e salvador, que existiu desde sempre. Com seu carisma e seus atos teatrais encanta e manipula as massas.
Lula enredou-se em duas narrativas míticas entrelaçadas: a revolucionária e a mística.
Como operário metalúrgico, líder sindical e do Partido dos Trabalhadores, foi investido da força simbólica sagrada do mito revolucionário. Exprime o sonho romântico e regressivo de uma idade de ouro pré-industrial qualquer, a nostalgia de uma comunidade primitiva, de uma fraternidade tribal. O herói conduzirá a nação até este “jardim da infância” humano, onde haverá abundância para todos, sob o reino do pai justo e bom. No Manifesto do Partido, lê-se: “construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores”. É o projeto de sociedade democrática e popular, o socialismo.
A revolução e a crença mística criam a esperança do reino dos pobres, “herdeiros” do reino vindouro, a Terra Prometida.
Muito mais poderoso, na sociedade brasileira, é este mito messiânico. É daí que Lula extrai toda a sua couraça sagrada. Um dos ideólogos da costura desta justaposição, – involuntária, certamente-, foi frei Betto. Tomemos, por exemplo, seu livro “Lula, biografia política de um operário”. O amálgama entre o torneiro mecânico e o Messias começa na origem humilde do primeiro. Lemos aí que “nasceu no Nordeste… numa família de lavradores confinada a uma precária economia de subsistência. Sua trajetória familiar coincide com a de inúmeros nordestinos que, expulsos da terra pelo latifúndio ou condenados à fome pela ‘indústria da seca’…viajaram treze dias num ‘pau-de-arara’ na esperança de um futuro melhor…No litoral paulista…tornou-se vendedor ambulante…foi morar com a mãe e os irmãos num apertado cômodo nos fundos de um bar, cujo único banheiro era partilhado pela família e pelos bêbados. Seu primeiro emprego, aos doze anos, foi numa tinturaria…e, aos quatorze anos ingressou numa metalúrgica…” No imaginário social, -não há fatos comprovados-, o Salvador teria nascido numa manjedoura e sido artesão, antes de se tornar o pregador carismático. Esta origem humilde destinou-os a personificarem os salvadores dos pobres e dos oprimidos, dos fracos, dos necessitados, dos enfermos, dos excluídos, “daqueles que não têm voz”. A “classe trabalhadora” que chegou à presidência, através de seu líder máximo, representa os segmentos populares constituídos pelos “operários industriais, assalariados do comércio e dos serviços, funcionários públicos, moradores da periferia, trabalhadores autônomos, camponeses, assalariados rurais, mulheres, negros, estudantes, índios e outros setores explorados e marginalizados da sociedade brasileira (…).” O herói salvador venceu o demônio, isto é, “os donos do grande capital”.
Vamos citar outra superposição de imagens entre Lula e a vítima sagrada. No discurso que pronunciou à Nação para dar explicações sobre o “mensalão”, Lula afirmou que foi traído pelos companheiros. O célebre quadro da “Santa Ceia” imortalizou a figura do traidor Judas, com as trinta moedas…
Analisemos agora as bolsas, – programas sociais iniciados pelo famoso “Fome-Zero”-, que sustentam a população de baixa renda (os pobres), transformando-a na maior clientela do Estado (cerca de 46 milhões de pessoas). No discurso místico trata-se do sinal do maná, “o verdadeiro pão que vem do céu”(6, 32-33). O antropólogo Marcel Mauss escreveu um ensaio sobre a dádiva, em que analisa as mais antigas relações de troca nas sociedades. Um dos exemplos que cita é o “dom” (potlatch), que quer dizer, essencialmente, dádiva e alimento. Estabelece-se uma forma arcaica de contrato, em que o presente recebido é obrigatoriamente retribuído. A dádiva implica necessariamente a instalação de crédito. O potlatch é mais que uma troca: é um fenômeno religioso, mitológico e xamanístico, “pois os chefes que nele se envolvem representam, encarnam os antepassados e os deuses(…)”. O que é dado tem a obrigação de ser retribuído. Em outras palavras, a clientela cativa de Lula deve continuar retribuindo, e com juros. Não foi à toa a enorme diferença na votação da reeleição…
O cargo de presidente, no Brasil, é investido de forte carga emocional inconsciente. Na evolução histórica recente, ungiu-se de uma áurea sagrada, devido ao que Mauss estudou como sistema sacrificial. Getúlio Vargas, “o pai dos pobres”, deixou um manuscrito em que declarava “que o sangue de um inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus”. Tancredo Neves, oriundo da mesma terra de Tiradentes, teve uma longa agonia. Remetem à figura da vítima ancestral do sacrifício primitivo, o cordeiro pascal. Estes sacrifícios mortais de presidentes forneceram os elementos de um simbolismo sobrenatural ao papel social. Lula se beneficia deste cordão consagrado na crença popular. Aos olhos do povo, chega a ser um verdadeiro sacrilégio vaiá-lo…
Um líder sindical metalúrgico, dotado de forte carisma, conduziu greves operárias no final do regime militar, tendo sido preso na época (1980). Nasceu, assim, o mito Lula, fabricado pelos teólogos da libertação, pelos intelectuais de esquerda, pelos publicitários e pela mídia.
Este mito reverberou fundo na alma nacional, na presente contingência histórica. A sociedade brasileira encena, através dele, sua natureza profundamente cristã.
Rezemos para que o final do drama não seja mais trágico do que já está sendo.
Agosto de 2007.
Merval, vou comprar seu livro. ok
um abraço.