Em outubro deste ano, a população brasileira retorna às urnas para a escolha de seus representantes políticos. Neste cenário, a democracia entra em debate pautada pela participação do indivíduo na vida pública do país. Nossa cidadania está restrita ao voto? Para falar sobre o tema, o Instituto Millenium entrevistou a professora Fátima Anastasia, organizadora, junto com Leonardo Avritzer, do livro “Reforma política no Brasil” (2006, co-publicação da Editora UFMG com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – Pnud). Ela é pós-doutora em ciência política e docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Anastasia acredita na necessidade de transformar a “democracia eleitoral” em uma “democracia de cidadãos”. Para que isso aconteça, a professora defende mecanismos de participação concretos e a redução da desigualdade socioeconômica no país. “Precisamos transformar as preferências e os recursos dos indivíduos em capacidades”, defende. Leia a entrevista.
Instituto Millenium – Para boa parte da sociedade o exercício democrático está restrito ao voto. Por que isso acontece?
Fátima Anastasia – Utilizando a definição minimalista, a democracia tem necessariamente a ver com a realização de eleições livres, periódicas e competitivas. No entanto, apenas com esses elementos temos pouca democracia. Isso não é suficiente para o exercício democrático do cidadão. A periodicidade do voto faz com que nós nos limitemos à condição de eleitores enquanto o desafio da democracia, no mundo atual, é exatamente como transformar a democracia de eleitores em democracia de cidadãos, uma agenda proposta pelo professor Guillermo O’Donnell (cientista político argentino, autor de “Análise do Autoritarismo Burocrático”)
A democracia é um fenômeno em constante aperfeiçoamento. Nós temos, na Constituição de 1988, alguns mecanismos previstos de mais participação das pessoas. O referendo, o plebiscito, a iniciativa popular e os conselhos setoriais de políticas públicas são mecanismos pelo meio dos quais o cidadão pode vocalizar suas preferências perante os governantes mesmo fora dos momentos eleitorais. Isso já significa um avanço, mas são, de acordo com o Sartori [Giovanni Sartori, cientista político italiano], contextos decisórios descontínuos. As democracias têm o desafio de achar meios para institucionalizar a participação contínua do cidadão.
Instituto Millenium – Isso seria o que a senhora chama de transição da democracia eleitoral para a democracia de cidadãos?
Anastasia – Essa é uma agenda do O’Donnell e eu concordo com ele. Eu trabalho com uma definição procedimentalista de democracia. O que separa as democracias e as autocracias é a realização das eleições livres, periódicas e competitivas. A partir dessa base, muita coisa precisa ser aprimorada para que possamos ter o exercício da democracia.
Sempre que os cidadãos precisam ir muito às ruas, em um regime democrático, isso significa que eles não estão encontrando, ou valorizando, os instrumentos institucionalizados e rotineiros de participação política dos quais eles dispõem. A democracia deve ser uma rotina para todos e no Brasil isso ainda não aconteceu.
Instituto Millenium – Por quê?
Anastasia – Porque nossa democracia, a mais longeva da história brasileira, ainda é muito recente. Sou convicta de que democracia se aprende fazendo. Pesquisas mostram que pessoas mais participativas dentro de mecanismos institucionalizados, ligados ao Poder Legislativo ou ao Executivo, costumam valorizar mais a participação democrática e a própria democracia.
Instituto Millenium – A senhora acha que, no Brasil, as pessoas estão prontas para participarem do processo decisório? O populismo ou o possível enfraquecimento das instituições não representam perigo?
Anastasia – A afirmação de que o exercício democrático contribui para a valorização da democracia é respaldada por constatações empíricas. No entanto, isso não basta. Um dos nossos maiores desafios é a construção de uma democracia em um contexto econômico, social e político que ainda é bastante espinhoso para o exercício democrático. Mesmo tendo avançado bastante nesse sentido, ainda somos um país com uma desigualdade enorme, que afeta as possibilidades da cidadania, especialmente no que se refere à construção das capacidades individuais.
Os cidadãos são movidos por preferências e pelos recursos que dispõem. Precisamos achar mecanismos que possibilitem a tradução de preferências e recursos em capacidades. Quando os recursos são mal distribuídos, como, por exemplo, o recurso à informação, os perigos aos quais você se refere são uma ameaça. O cidadão que tem pouco acesso a informações políticas vai ter sua percepção limitada, tendo diminuído seu leque de escolha.
Instituto Millenium – Pode-se afirmar que falta uma reforma política que contribua para esse aprimoramento democrático?
Anastasia – Precisamos lembrar que as coisas sempre podem piorar. Que reforma seria essa? Eu não acho que nosso maior problema esteja no nosso arranjo institucional, mesmo podendo aprimorá-lo. O problema político brasileiro não vai ser resolvido com isso porque a política não se faz somente com as regras formais do jogo, mas também com preferências e recursos. A desigualdade dificulta a vocalização das preferências. As pessoas reclamam das instituições, do Congresso Nacional, por exemplo, mas se esquecem de que ele reflete tanto as regras eleitorais quanto as preferências do cidadão. na urna. Mudar as instituições não é a salvação para o problema. Podemos até piorá-lo.
Instituto Millenium – Ampliando a questão para a América Latina, como a senhora avalia a democracia na região. Parece que sempre enfrentamos entraves para o pleno funcionamento da democracia, como o narcotráfico, a fragilidade institucional, a forte intervenção estatal na economia…
Anastasia – Não podemos afirmar que a América Latina é uma região na qual a democracia se consolidou plenamente. Há países com déficits democráticos sérios, como a Venezuela, que está em destaque atualmente. Lá não existe democracia, já que se nega o direito às manifestações livres, à liberdade de imprensa e informação etc. Há um conjunto de restrições às liberdades democráticas semelhantes em outros países.
Eu tenho uma aluna que está trabalhando com a cláusula democrática do Mercosul, questão muito importante. Por que essa cláusula não obriga o bloco a se manifestar pela garantia do direito à oposição e à liberdade de opinião e imprensa na Venezuela?
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