Corria o ano de 1983 e esse vosso escriba semanal, então vivendo na velha e permanente pindaíba de professor universitário do Museu Nacional, foi convidado pela então recém-inaugurada Rede Manchete de Televisão a escrever e apresentar uma série chamada Os Brasileiros. Meu narcisismo exultou. Finalmente, eu ia ficar “bem de vida” e, quem sabe, famoso. A ponderação, essa amiga do ceticismo, hesitou, mas foi vencida sobretudo porque, em 1979, eu havia publicado em Carnavais, Malandros e Heróis: Para Uma Sociologia do Dilema Brasileiro, uma interpretação do Brasil a partir de dois dos seus rituais mais representativos, ainda que opostos: o carnaval que fantasia as diferenças e promove uma mistura de tudo com todos; e o reprimido rito autoritário do “Você sabe com quem está falando?”, que – em contextos de plena igualdade – distingue um “Alguém” de um suposto “ninguém”. A oportunidade de traduzir em imagens os paradoxos e contradições desta sociedade que eu tanto amo quanto estudo, era irrecusável.
Uma loteria: dobrava-me o salário e aumentava a minha capacidade de conhecer e interpretar o Brasil, deixando de lado as limitações da antropologia acadêmica dos símbolos e dos rituais, que eu praticava escrevendo para uma dúzia de colegas, metade dos quais a criticava, enquanto a outra não a compreendia.
A oportunidade de transpor parte do Brasil na telinha permitiria alcançar multidões e ser admirado por todos, excetuando – é claro – os invejosos e ressentidos, falou de dentro de mim o meu lado igualmente invejoso e ressentido.
Dirigido por Maurice Capovilla, um realizador consagrado, e produzido pelo mestre e saudoso Fernando Barbosa Lima, então diretor da Intervídeo, ao lado de Roberto d’Ávila (hoje um inspirado entrevistador) e Walter Salles (que faz parte do panteão glorioso dos cineastas nacionais), eu escrevi com a ajuda fraterna de Sérgio Augusto, outro consagrado jornalista comentarista – dez episódios que cobriam o Brasil por ângulos singulares. Não falava de política e muito menos de economia, mas de hábitos, comidas e do trabalho que obrigava a sair da casa para a rua. Passávamos pelas relações raciais, demonstrando o nosso clássico preconceito de não ter preconceito – conforme aprendi com Florestan Fernandes e não deixamos de explorar as práticas religiosas. Havia, é claro, um capítulo sobre a malandragem, que até hoje permite driblar as normas e a lei.
Resumo dizendo que desse programa dragado pelo tempo ficou a experiência de tentar registrar a dialética entre o oficial e o não oficial no Brasil.
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Na roteirização da malandragem, aquele fio de navalha entre o legal e o criminoso, decidiu-se visitar um presídio, esse espaço no qual malandros viravam presidiários.
Passamos o dia numa cadeia. A própria visita amedrontava, revelando como a prisão ainda é um espaço amaldiçoado porque qualquer contato direto com condenados tem o toque da contaminação, conforme acentuei na minha crônica anterior.
Dessa experiência, eu guardo a impressão de ajuntamento e de um claro controle do espaço interno pelos prisioneiros. Ali estava cristalizada a sociedade brasileira. Havia ricos e pobres, mandões e seguidores. Não me esqueci da cozinha especial, onde havia uma “comida” especial para certos presos. A superpopulação simplesmente salientava quem eram os “donos” e os comuns.
Naquele tempo, não se falava em facções, mas elas certamente existiam. O crime – essa é uma das minhas impressões mais fortes – era desmoralizado ou simplesmente desfeito por um vergonhoso sistema penitenciário, destinado a marginalizar ainda mais os condenados. O que vi na cadeia, não foi um sistema de punição, mas de castigo e vingança. Todos sabem que a opinião pública nacional considera um acinte que presos tenham direitos. Para ela, eles deveriam “pegar na enxada” e serem, como os escravos, castigados com trabalho forçado. Se você tem dúvida, faça um inquérito.
Uma última questão: quem deseja ir além das palavras fáceis para enxergar como as prisões superlotadas, controladas por bandidos, são o resultado de uma brutal desigualdade e da total inversão do objetivo da política que, em vez de servir a sociedade da qual faz parte, faz o exato oposto e dela se serve para enriquecer a canalha que diz fazer tudo dentro da lei?
Resposta: ninguém!
Fonte: O Estado de S.Paulo, 18/01/2017.
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