Da hoje talvez esquecida obra do psicólogo existencial Rollo May (1909- 1994), ficou em mim a marca de dois dos seus livros. O do famoso “Amor e vontade” (de 1969); e de “Coragem para criar” (de 1975) que li na Universidade de Cambridge, Inglaterra, quando visitava brevemente o seu Centro para Estudos Latino-Americanos, em 1978, e lá terminava o meu livro “Carnavais, Malandros e Heróis”, no qual tentei revelar o Brasil pelo seu avesso conflitivo, dilemático e hierárquico por meio de instituições tidas como inocentes como o carnaval, o você sabe com quem está falando e os seus heróis – alguns vistos como santos, outros como bandidos, quase todos como malandros. Era preciso alguma coragem para escrever sobre o Brasil sem falar em classes sociais, usar o estruturalismo de Dumont e Lévi-Strauss (tido como a miséria da razão) e citar o reacionário Alexis de Tocqueville e não o revolucionário Karl Marx.
Num desses livros, Rollo May conta o drama do jovem pesquisador que morreu e, chegando à porta do Paraíso, é julgado por São Pedro. No solene rito territorial que vai decidir sua futura vida eterna no Céu ou no Inferno (lembro que Rollo nasceu em Ada, Ohio, e que para os calvinistas não há o razoável e passageiro Purgatório com suas indulgências), o jovem decide que o melhor caminho é confessar e vai logo dizendo que tinha falsificado os dados de sua tese de doutorado em Psicologia Experimental. O calejado porteiro celestial olha para aquela alma, transparente na sua patética autoconfissão, e profere: “Não, meu jovem. O que pesa na sua vida não foi essa banal falsificação. Falsificar e enganar são dimensões constitutivas dos mortais. Esse é um pecado que não levamos muito a sério aqui em cima. O seu grande pecado, aquele que pode efetivamente condená-lo, é que você foi enviado para um teatro de horrores e para um vale de lágrimas e, no seu trabalho, você o reduziu a um mero circo de cavalinhos. Sua tarefa era compreender as tremendas contradições que são parte da vida emocional emoldurada pela razão e você reduziu tudo a um problema de estímulo e resposta!”. Hoje, São Pedro certamente mencionaria a neurociência, esse novo reducionismo ocidental.
Tenho sido perseguido por essa passagem e talvez seja por isso que hoje, velho e um tanto cansado dos teóricos que pululam nas universidades, eu prefira ler literatura onde ninguém precisa falsificar coisa alguma, porque tudo já está falsificado, satisfazendo de sobra aquilo que buscamos. A falsificação convincente, com início, meio e fim, que tanto leva a admirar a temeridade do ladrão, a ousadia e a natural mendacidade dos políticos, quanto a bravura sisuda de um deslindador profissional de mentiras, como é o caso dos juízes os quais, com a intrepidez de Teseu, entram no labirinto do monstruoso Minotauro e, confiantes no tênue (mas mágico) fio de Ariadne não se perdem no dédalo das mentiras, as quais destroem, estabelecendo no ritual do julgamento (esse ato público de regeneração moral) o fim das falsidades.
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Essa parábola do julgamento do jovem cientista tem sido o meu emblema neste histórico e crucial ajuizamento do mensalão. Tenho assistido com assiduidade e interesse à atuação dos magistrados e dos defensores e me orgulhado de seus desempenhos. O drama da Justiça ao vivo, num caso tão importante quanto complicado e delicado para a vida democrática do nosso país, é muito semelhante à entrada no Céu ou o risco de deslindar confusões e decidir o caminho nas encruzilhadas.
Espantou-me como a maioria dos magistrados buscou com zelo e lucidez os fios mágicos – dentro daquilo que os juristas chamam de “contraditório” – para realizar um percurso em busca de uma verdade com duas caras: a da promotoria e a da defesa. Sem, diga-se de passagem, esquecer o direito dos réus. Tudo na ausência da autoridade de um poder final ou divino, exceto aquelas manifestações de onipotência humana que fazem parte de todo confronto público em que o foco é a divergência e por isso mesmo prevalece a regra da lei.
Esse espetáculo de civilidade deve ser não apenas louvado, mas visto por todos, sobretudo pelos lulo-petistas que estão no governo e nele ocupam cargos da mais alta responsabilidade.
Outro dia, um velho e querido amigo petista reclamou comigo da “politização” do caso. Mas como poderia ser de outro modo se tudo o que era do PT (e da chamada “esquerda” em geral) – do café da manhã aos desfiles carnavalescos e os jogos de futebol, sem esquecer o amor e o sexo – era (ou deveria ser) politizado? E como não ter desdobramentos políticos se o caso começa precisamente motivado por uma perspectiva da política e do poder? O que não se pode fazer é psicologizar o mensalão. Porque nesse caso seria bem pior e o julgamento entraria no terreno das compulsões e esquizofrenias nas quais a mão esquerda ignora a mão direita e deseja decepá-la, como é corrente no caso dos que escolhem o extremo como rotina e método. Ademais, se o caso fosse lido por psicólogos, alguns acabariam num hospício.
Por outro lado, essa politização está contida pelas etiquetas legais e pelos procedimentos jurídicos. Ninguém deseja destruir ninguém e muito menos um partido com a importância do PT. Agora, julgar aquilo que surgiu como engodo coletivo e como um plano para evitar o jogo liberal e igualitário de ganhar para depois perder e, em seguida, ganhar novamente, como sendo um evento trivial seria não somente leviandade, mas uma fuga dos desafios que a democracia demanda da sociedade brasileira.
Por isso, não há como fugir dessas duras viagens pelos labirintos das verdades e das mentiras. Por mais que isso aflija os que estão no mais alto poder e os que lá estiveram e se sentiram como deuses; ou fantasiaram o mundo como um circo de cavalinhos e pensaram que todos eram otários.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 05/09/2012
as esquerdas não admitem serem acusadas de coisa alguma. São doutrinados para negar qualquer acusação que os contrarie. Se admitissem, desmontariam…