Alguma coisa estranha, provavelmente muito estranha, aconteceu ou está acontecendo com a Receita Federal. Em primeiro lugar, a secretária Lina Vieira, após pouco menos de um ano no cargo, foi demitida em meados de julho sem que até hoje o governo tenha fornecido algum motivo claro para isso; não se sabe com precisão, sequer, quem realmente a mandou embora. Lina teria sido dispensada porque a arrecadação federal caiu durante o seu período de permanência no comando. Ou, então, porque entrou do lado errado numa disputa altamente técnica com a Petrobrás a respeito de impostos no valor de 4 bilhões de reais que a empresa teria a obrigação de recolher, segundo a Receita, ou o direito de não recolher, segundo a estatal. Citam-se também obscuras disputas entre grupos internos, nas quais a secretária teria acabado levando a pior, ou desentendimentos com superiores hierárquicos não satisfatoriamente definidos.
Mais recentemente, enfim, a demissão de Lina passou a ser ligada a um choque com a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, em torno de investigações sobre a situação fiscal de negócios da família Sarney. (A propósito: já não estaria na hora de criar um ministério, ou pelo menos uma secretaria “com status de ministério”, para cuidar exclusivamente das questões envolvendo o senador Sarney? Fica aí a sugestão.) Tão inquietante quanto essa nebulosa toda foi a demora para a nomeação do novo titular, Otacílio Cartaxo, que só acabou sendo feita no dia 13 de agosto. Quando Lina Vieira foi demitida, o mínimo que se poderia esperar era que o governo já tivesse, mais do que pronto, um nome para colocar no cargo; afinal, a Receita Federal não é uma repartiçãozinha de quinto escalão que possa ficar sem chefe esse tempo todo. Mas o fato é que o governo não tinha tal nome — ou, se tinha, não conseguiu fazê-lo assumir o posto na hora certa. É ruim dos dois jeitos.
Nada disso melhora com a discussão enjoada que apareceu nos últimos dias envolvendo Lina e Dilma, e que acabou por ocupar um dos lugares de destaque no noticiário político recente. Lina disse que foi chamada por Dilma, quando ainda ocupava a direção da Receita, para uma conversa no Palácio do Planalto na qual a ministra teria lhe pedido que fizesse alguma coisa para “agilizar” uma solução nos dissabores tributários do clã Sarney. Dilma afirma que teve contatos normais de trabalho com Lina, mas que a reunião particular a que ela se refere jamais aconteceu, e que o assunto Sarney em nenhum momento foi tratado entre as duas. Desde então, nem a ex-secretária nem a ministra mudaram em nada as suas versões. Como é que fica, então? Uma das duas partes está mentindo — ou no mínimo, e na melhor das hipóteses, existe aí um tremendo mal-entendido, que o passar dos dias não está ajudando, nem um pouco, a tornar mais bem entendido. Ao contrário, e muito naturalmente, o assunto foi promovido à categoria de “questão política”. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou convite para Lina Vieira ir depor, e a partir daí as divergências sobre a reunião — aconteceu? não aconteceu? há provas materiais do encontro? o que mostram os vídeos da garagem do Palácio do Planalto? que roupa Dilma vestia? — ganham novos atores, plateia e direção de cena, sem ganhar perspectivas reais de que a verdade apareça. É o Brasil.
Para o maior interessado na história, o contribuinte brasileiro, tudo isso é uma lástima. A Receita Federal é uma divisão modelo dentro da administração pública brasileira. Sua competência tecnológica a coloca entre as melhores e mais eficazes processadoras de impostos do mundo. Seu corpo de funcionários foi aprovado em concurso público. Seu desempenho faz dela um oásis de qualidade profissional na máquina do governo. É o último lugar, portanto, que deveria ser contaminado com disputas de força dentro do governo e arrastado para a vala comum da desconfiança que desmoraliza uma porção tão grande do poder público no Brasil.
Fonte: Revista Exame, publicado em 26 de Agosto de 2009.
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