As fotos mostram uma das maiores desgraças do país: a ideia de que, sem diploma, o cidadão não vale nada
O que é dar certo na vida? Esta foi a questão levantada na internet no começo da semana, à custa de uma turma de adolescentes gaúchos que, às vésperas do vestibular, fez, na escola, uma festa a fantasia — com o que, imaginavam, poderia ser o seu futuro caso não passassem nas provas e, consequentemente, nada desse certo. Se nada desse certo, mostravam as suas fantasias, eles seriam garis, revendedoras de cosméticos, faxineiras, cozinheiros, atendentes de telemarketing, fritadores de hambúrguer em cadeias de fast food, ambulantes. Escola e estudantes foram crucificados. A escola, Instituição Evangélica de Novo Hamburgo, veio a público, em meio à tempestade, para pedir desculpas pelo “mal entendido”.
Mas não houve mal entendido algum — e é por isso que as fotos, em que os alunos claramente ridicularizam trabalhadores, são tão chocantes. Além de expor a péssima educação que esses meninos e meninas vêm recebendo, e de revelar vários graus de preconceito, elas põem em evidência uma das maiores desgraças do Brasil, este país de doutores: a ideia de que, sem um diploma universitário, o cidadão não vale nada, e fracassou na vida. Essa noção, que divide a sociedade em classes distintas, está tão arraigada no nosso inconsciente coletivo que, para a maioria, a existência de prisão especial é algo perfeitamente normal. Afinal, como é que um criminoso diplomado pode ficar na companhia de presos sem instrução?
O culto do curso superior não deforma apenas as nossas relações sociais e o nosso sistema penitenciário, mas toda a infraestrutura do país. Trocamos bons cursos profissionalizantes por péssimas universidades. Não formamos mão de obra especializada, mas temos centenas de milhares de bacharéis que jamais trabalharão nas suas especialidades, assim como temos cursos “superiores” que poderiam ser muito mais bem resolvidos, em termos de tempo e de recursos, com um ensino médio de qualidade.
Mas, num país que ainda não conseguiu se livrar da herança escravocrata, diploma bom não é necessariamente um diploma que se traduz em conhecimento, mas sim um diploma que se traduz em prestígio. Serviços e trabalhos manuais, sejam quais forem, são considerados ocupações de segunda classe, próprias para quem “não deu certo”.
É a essa visão distorcida que o Brasil deve a sua escassez de empreendedores. Em sociedades menos preconceituosas, jovens cortam a grama dos vizinhos, entregam pizza, servem em lanchonetes e restaurantes e fazem toda a sorte de pequenos serviços. Com isso aprendem não só o valor do dinheiro, mas o valor dos seres humanos. Aprendem também, desde cedo, uma ética de trabalho que não se conquista com a mesada dos pais.______
Eu me lembro até hoje de uma conversa que ouvi há alguns anos, enquanto esperava no cabeleireiro. Ao meu lado, duas moças liam uma revista de celebridades, e ficaram chocadas ao descobrir que um sobrinho da Rainha Elizabeth era marceneiro. As duas, que não teriam estranhado se ele fosse astrólogo, poeta ou economista, estavam absolutamente perplexas: como se explicava aquilo? O que dera errado na educação do rapaz? Um nobre metido numa oficina, quando podia estar num escritório bem decorado! Eu via a oficina e o escritório na minha cabeça, e só pensava que homem inteligente era aquele, que fizera tão boa escolha.
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Muita gente considerou excessiva a condenação à festa dos adolescentes gaúchos. Afinal, era só uma diversão inconsequente; eles são jovens e, como todos os jovens, têm direito à sua cota de bobagens. Quem nunca fez besteira aos 17 anos?
É verdade.
Como sempre, a reação dos SJW — de Social Justice Warriors, os justiceiros das redes sociais — foi cruel e exagerada, e li o depoimento de uma professora que dizia que os alunos estão traumatizados, com vergonha de dizer onde estudam.
Os adolescentes merecem certamente menos condenação do que os seus pais e do que a escola, que promoveu a “reflexão” e que, no seu pedido de desculpas pessimamente escrito, provou que não sabe mesmo o que é bom ensino. Ainda assim, é perturbador constatar que nenhum dos estudantes parou para pensar no que é, de fato, dar certo na vida — e, se parou, não foi capaz de ir além do ideal de ser rico.
Nisso, como na aspiração ao famigerado diploma, os alunos da IENH não estão sozinhos. No Brasil de hoje, a ideia de que a realização pessoal não corresponde necessariamente ao valor do contracheque ou ao tamanho da conta bancária é tão exótica, mas tão exótica, que chega às raias da excentricidade: como é que alguém pode ser feliz ganhando pouco dinheiro?!
Os exemplos máximos do pensamento dominante estão na cadeia — ou vão para lá em breve. Homens e mulheres que tiveram a chance excepcional de dar uma contribuição efetiva para o país, tendo a satisfação de deixar um nome respeitado na História, preferiram se corromper por viagens em jatinhos, suítes das mil e uma noites, sapatos de sola vermelha.
O que salva é que, pelo menos, a maioria tem diploma universitário.
Fonte: “O Globo”, 08/06/2017
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