Ao longo de 2012, tratei aqui de diversas questões associadas à Previdência, incluindo o tema do salário mínimo; a necessidade de aprovação de novas regras de benefícios, com uma fórmula de transição para quem está no mercado de trabalho; a adoção de uma nova idade de aposentadoria; a diferença entre gêneros; o período contributivo; o caso das pensões; e os dispositivos específicos para os trabalhadores do meio rural e para os professores. Hoje vou tratar de um assunto ligado a essas questões: o valor do pagamento da Loas, que são as iniciais da Lei Orgânica da Assistência Social, que regula a concessão dos benefícios assistenciais.
O compositor Arnaldo Antunes, em tirada muito perspicaz, disse certa vez que “não há nada mais moderno que envelhecer”. É uma maneira feliz de entender uma das grandes tendências da vida moderna, que é a mudança demográfica em curso.
Se há cada vez mais idosos e se o justo pagamento de benefícios a estes faz parte do chamado “contrato social” do país, implicando uma despesa cada vez maior, faz sentido que se repensem algumas das “cláusulas” que formam parte desse “contrato”. Uma delas deveria ser a igualdade entre o valor do benefício assistencial e do piso previdenciário.
O item V do Artigo 203 da Constituição, no capítulo da assistência social, define que entre os objetivos desta encontra-se “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”. Claramente, os constituintes que incluíram tal redação na Carta Magna o fizeram imbuídos do melhor propósito e não tenho dúvidas de que, confrontados com a letra do Artigo, a maioria dos leitores, por razões elementares de solidariedade social, terá achado tal garantia, em tese, “justa”. Nada mais natural, a princípio. Vejamos isso, porém, com maiores detalhes. Vou colocar o leitor diante de duas situações muito concretas e indagar a sua opinião.
Caso 1. Há duas pessoas, em situação praticamente idêntica. Pedro ganhava um salário mínimo, contribuiu para o INSS durante muitos anos e, ao se aposentar, passou a receber uma aposentadoria no valor de um salário mínimo. Por outro lado, João ganhava a mesma coisa que Pedro, mas não tinha carteira de trabalho e nunca contribuiu para o INSS. Aos 65 anos, passou a receber Loas, no valor de um salário mínimo. Pedro contribuiu durante décadas para o INSS, João poderia ter contribuído como autônomo e não o fez, mas ambos ganham hoje o mesmo valor — o primeiro, pago pelo INSS, e o segundo, pelo Tesouro. Pergunto: isso é justo?
Caso 2. Há duas pessoas. “Seu” José tinha um salário de dois salários mínimos, em função do qual contribuiu a vida toda para o INSS. Aposentou- se ganhando acima do salário mínimo e atualmente o seu reajuste é dado pelo INPC, com zero de aumento real da sua aposentadoria em relação a 2011. Já o mesmo João do caso anterior, que recebe o benefício da Loas, teve um aumento real da sua remuneração em 2012 de 8%, pelo aumento do salário mínimo. Um, “seu” José, contribuiu para o INSS durante 35 anos e teve zero de aumento real; outro, “seu” João, nunca contribuiu para o INSS e em 2012 ganhou aumento real de 8 %. Pergunto: isso é justo?
É justo que quem contribuiu durante 30 ou 35 anos ao INSS ganhe a mesma coisa que aquele que nunca contribuiu? Pessoalmente, penso que a resposta, claramente, deveria ser “não”. Uma coisa é estabelecer como princípio de solidariedade que deve existir um benefício assistencial mínimo para que as pessoas idosas ou sem renda não fiquem submetidas ao mais completo desamparo. Outra coisa completamente diferente é conceder a quem nunca contribuiu o mesmo benefício e no mesmo valor que o piso de aposentadoria conferido a quem contribuiu para o sistema durante mais de três décadas.
Por isso, deveria existir uma “hierarquia” remuneratória por meio da qual, cedo ou tarde, o país redefina o seu contrato social estabelecendo duas diferenciações: o salário mínimo deveria ser algo maior que o piso previdenciário e este deveria ser maior do que o benefício assistencial. Essa deveria ser parte da agenda de reformas futuras do país.
Fonte: O Globo, 05/11/2012
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