O Brasil vive uma primavera liberal. O liberalismo tem ocupado um espaço crescente na academia, na mídia e na política. Pela primeira vez na história defensores dessa doutrina inexplorada têm sido protagonistas no debate público ao confrontarem o Estado devorador.
No entanto, o desconhecimento sobre a essência do liberalismo gera situações estranhas. Não é incomum que haja críticas mal direcionadas, seja porque não fazem parte de seu escopo ou porque são atribuíveis à outra doutrina.
Adicionalmente, alguns aproveitadores intitulam-se liberais apesar de não defenderem o liberalismo. Roberto Campos dizia que todo cidadão com formação marxista parece um francês falando tupi-guarani quando se torna liberal.
É indesejável que a desinformação torne o debate uma torre de Babel na qual ninguém se entenda. Mais perigoso é o assalto a conceitos, como ocorreu nos EUA, onde “liberalism” passou a ser associado à esquerda.
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Instrumentos analíticos como a categorização pelos “tipos ideais” de Max Weber são úteis. Delimitam-se as fronteiras entre as doutrinas e ganha-se em inteligibilidade e clareza, ainda que a realidade, mais complexa, comporte ambiguidades e superposições.
Liberalismo não pode ser confundido com socialismo, social-democracia ou mesmo com neoliberalismo.
Qual é a essência do liberalismo? É um conjunto de ideias que propõe uma forma de pensar a sociedade e o mundo. É bem mais abrangente que a simplista alcunha “livre mercado”. É focado nas pessoas comuns e em sua busca por felicidade e paz.
É multidisciplinar; ao lermos Adam Smith, por exemplo, ficamos em dúvida se sua especialidade é economia, história, sociologia, filosofia ou psicologia.
No entanto, o escopo do liberalismo é limitado ao âmbito político-econômico e às relações em sociedade. Não se manifesta sobre valores pessoais, como o conservadorismo, mas prega a tolerância. Ocupa-se exclusivamente pela política, ou seja, por aquilo o que o governo ou a governança pública devem ou não fazer.
Assim circunscrito, o liberalismo estabelece a tríade vida, liberdade e propriedade como valores supremos. Os indivíduos não devem ser sacrificados em razão de alegados bens comuns. Presume-se que ordem e prosperidade emerjam das interações voluntárias e desimpedidas entre os indivíduos, e consequentemente o poder centralizado é visto com suspeição.
Conclui-se que a lei deve se limitar a resguardar a tríade, em uma atitude de laissez-faire, deixar fazer.
As demais doutrinas têm pressupostos incompatíveis, que se manifestam em proposições legislativas que relativizam ou sacrificam a tríade.
O socialismo defende a estatização de todos os meios de produção e a igualdade de resultados. A social-democracia mescla socialismo com alguma tolerância a mercados. Advoga empresas estatais, política industrial e campeões nacionais, tarifas de importação, política cambial ativa, distribuição de renda, leis e Justiça trabalhistas, e outros.
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Já o neoliberalismo, embora rejeite as políticas social-democratas, pleiteia intervenções como agências reguladoras, monopólio da moeda, órgãos antitruste, infraestrutura estatal como estradas e portos, gestão estatal de educação e saúde, renda mínima, entre outros.
Argumenta-se que o neoliberalismo não existe. No entanto, o tipo ideal acima existe e é distinto do liberalismo. Não vejo motivo razoável de utilizar outra denominação menos aceita.
O liberalismo, por força de seus princípios, rejeita cada intervenção acima. Chegou a hora de soluções de baixo para cima, pois o contrário já está provado que não dá certo.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 17/07/2019