As prisões sempre se deram em primeira instância no Brasil. A segunda instância passou a ocorrer a partir de 1973, com a Lei Fleury, da ditadura, imposta para livrar da cadeia o delegado e torturador Sérgio Paranhos Fleury. Mas era uma norma bastante limitada.
A regra geral da prisão após condenação em segunda instância acabou sendo uma construção do Supremo. Essa regra foi suspensa em 2009, pelo mesmo STF, em cima do mensalão, quando figurões passaram a ser condenados. Mais recentemente, em 2016, em clima de Lava-Jato, o STF voltou à prisão em segunda instância, com um placar de 6 a 5.
No momento em que a norma volta a ser discutida, a divisão, digamos, doutrinária no STF permanece a mesma de três anos atrás. Há ministros que sustentam a constitucionalidade da prisão em segunda instância e os que a consideram inconstitucional. Com uma novidade, a tese Toffoli: a prisão seria constitucional após condenação em terceira instância, no caso, o Superior Tribunal de Justiça.
Esta última posição é um óbvio puxadinho. Não faz qualquer sentido jurídico. Para os garantistas, o sujeito só pode cumprir pena depois da condenação transitada em julgado em última instância (no STF) e ainda assim depois de esgotados todos os recursos. Prevalecendo esse ponto de vista, são inconstitucionais as prisões em todas as instâncias inferiores.
Logo, a tese Toffoli é uma tentativa de arranjo político. Na dificuldade de formar maioria clara contra ou a favor da prisão só em última instância ou em segunda, fica-se com a terceira instância.
Portanto, esqueçam isso de respeito sagrado à Constituição. Se juízes da mesma corte, supostamente, portanto, do mesmo nível de conhecimento jurídico, podem chegar a interpretações completamente diferentes, a questão passa a ser política.
E, óbvio, tem a ver com a Lava-Jato. Quem pretende procrastinar a cana? A turma ilustre formada por apanhados da Lava-Jato, os que estão para ser apanhados, os que temem entrar na dança e seus associados.
Por isso, é também uma questão prática. Quanto mais instâncias o processo precisar percorrer, maior o espaço de trabalho dos advogados. Melhor, portanto, para os réus ricos e/ou poderosos politicamente, que podem contratar advogados do primeiro escalão, com trânsito nas cortes da corte.
Por trás de tudo, temos um grande embate não apenas político e jurídico, mas também moral e econômico. A Lava-Jato desvendou não um episódio de corrupção, mas um completo sistema, estruturado nos setores público e privado, para roubar dinheiro do contribuinte. Beneficiaram-se partidos, empresas e pessoas.
Construiu-se, assim, um capitalismo de amigos — amigos ladrões — que corrompeu a eficiência da economia brasileira. Não adiantava ser eficiente na produção. Era preciso ter relações eficazes nos governos.
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O avanço da Lava-Jato provocou a reação, em diversas frentes. Nos tribunais, nos parlamentos, em parte da imprensa. E essa tentativa de desmoralizar a operação e o juiz Moro com base nas conversas capturadas de promotores da Lava-Jato.
As conversas, se comprovadas, não são propriamente educadas. Mas é preciso separar as conversas sobre os processos dos próprios processos. A tentativa de usar as conversas para pedir a nulidade da Lava-Jato mostra o contrário: a absoluta regularidade e legitimidade dos processos. Reparem: precisaram procurar algo fora do processo para tentar desmontá-lo.
Não se argumenta que o juiz Moro rejeitou testemunhas ou provas das defesas. Não se argumenta que não ouviu regularmente os réus.
Reclama-se que o promotor Dallagnol comemorou, lá pelas tantas: “O Fachin é nosso”. E esculhambou o ministro Gilmar. Ora, isso não desqualifica a acusação feita pelo promotor nem a decisão de Fachin.
E por falar nisso, se xingamentos fora dos autos desqualificassem os autos, seria preciso anular todas as decisões do ministro Gilmar em casos da Lava Jato. Ele não poupa, como diz, “essa gente como Moro” ou “como Dallagnol”.
De todo modo, essa história não termina aqui. A Lava-Jato continua nas ruas.
Fonte: “O Globo”, 24/10/2019