Depois de considerado erradicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2016, o sarampo voltou ao Brasil. Houve mais de 1.000 casos nos primeiros quatro meses deste ano. A poliomielite, erradicada havia 20 anos, volta a ameaçar o continente, depois de um caso registrado na Venezuela. Difteria, rubéola, tétano e outras doenças ressurgem graças a um fenômeno que tomou conta do país nos últimos dois anos: pais que não vacinam os filhos. Apenas 322 municípios brasileiros, ou 6%, atingiram no ano passado a meta de vacinação estipulada pelas autoridades. Em outros 1.453, ou 26%, ela não foi atingida para nenhuma das dez vacinas monitoradas. É o pior nível nesses indicadores em quase duas décadas. A queda foi abrupta. Desde 2015, a cobertura de vacinação contra a pólio caiu de 98% para 77%. Contra o sarampo, de 96% para 84%. Em 2017, nenhuma das vacinas atingiu a imunização ideal, de no mínimo 95%. Com nível abaixo de 70%, é altíssima a probabilidade de novas epidemias.
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O alerta das autoridades veio acompanhado da questão: o que aconteceu em tão pouco tempo para justificar tamanho retrocesso? Não houve mudança significativa no funcionamento dos postos de saúde ou nas campanhas. A responsabilidade recai sobre os próprios pais, que preferem deixar seus filhos expostos a vírus. O principal motivo, as autoridades mal ousam citar: a propaganda maciça contra a vacinação promovida em redes sociais como Facebook ou WhatsApp. É mentira que vacinas causem autismo ou que não haja problema em deixar de vacinar os filhos contra doenças que quase sumiram (elas voltam!). Mas a propagação de mentiras assassinas como essas e tantas outras contribui para sustentar as redes sociais. “Não houve alguém numa empresa de tecnologia que tenha decidido promover a retórica antivacina como tática. Poderia muito bem ter sido a retórica anti-hamster”, escreve o cientista da computação, músico e filósofo Jaron Lanier em Ten arguments for deleting your social media accounts right now (Dez argumentos para apagar suas contas em redes sociais agora mesmo). “A única razão para a reforçarem é que a paranoia se revela em geral um modo eficaz de atrair a atenção.”
O livro de Lanier, um pioneiro da realidade virtual conhecido como crítico da ideologia do Vale do Silício, é um libelo contra o modelo de negócios baseado em anúncios e na manipulação dos internautas. “Se conseguíssemos nos livrar desse modelo deletério, a tecnologia subjacente não seria tão ruim”, escreve. Seus dez argumentos destrincham as consequências nefastas da forma como as empresas digitais, sobretudo Facebook e Google — Lanier hoje trabalha na Microsoft —, ganham dinheiro e mantêm seu poder. Além de propagar mentiras como vírus, tal modelo manipula o comportamento; reduz o livre-arbítrio; transforma todos em imbecis malcriados; estimula emoções negativas, mais eficazes para manter o “engajamento”; subtrai o contexto essencial a qualquer expressão; destrói a empatia; aumenta a infelicidade; transforma profissões dignas em atividades precárias, com remuneração exígua ou inexistente; torna a democracia inviável — “mídias sociais são enviesadas não para a direita ou para a esquerda, mas para baixo” —; e aniquila qualquer sentido de espiritualidade, substituída pela visão mecânica de que seres humanos não passam de máquinas programáveis, como os computadores.
“Gente inteligente deveria apagar suas contas nas redes sociais até que variedades menos tóxicas estejam disponíveis”, diz Lanier.
“Não há uma opção real de trocá-las para redes diferentes. Largar completamente é a única possível para mudar.” Ele reconhece que sua proposta é radical, não se aplica a todos da mesma forma e pode até ser inviável. Para a maioria, diz que um jejum de seis meses já ajudaria. Por mais que pareça exagerado, seu alerta precisa ser ouvido. É preciso interromper o vício. Se ainda não descobrimos vacina eficaz contra os males digitais, por que não cortar por completo o contato com seus transmissores? Mal não fará.
Fonte: “Época”, 12/07/2018