Um fato é frequentemente sua narrativa, ou melhor, suas diferentes narrativas em suas sintonias, dissonâncias e, mesmo, contradições. Nosso olhar do mundo é moldado por visões perpassadas por versões que suscitam adesões e posições, simpatias e antipatias, conceitos e preconceitos.
Eis por que em situações de conflito a disputa pela opinião pública é de tanto valor, pois nela se tecem e se articulam alianças e oposições que são da maior relevância não somente para a compreensão dos fatos, mas, também, para a orientação das ações.
O recente conflito de Israel com o grupo radical Hamas é um muito bom exemplo de como versões atropelaram manifestamente os fatos, dando lugar a manifestações de simpatia ou antipatia, onde preconceitos vieram facilmente à tona. Supostas análise e reportagens, que se apresentavam como “neutras”, deram vazões a preconceitos bem arraigados. Alguns analistas deveriam fazer análise, psicanaliticamente falando.
O conflito foi, em certas versões, apresentando como uma agressão israelense que teria “assassinado” o comandante militar do Hamas, Ahmed Jabari. Seria, nessa perspectiva, uma iniciativa israelense. Ora, o Hamas vinha bombardeando com foguetes o Estado de Israel, não dando tréguas aos seus cidadãos. O que era esperado? A inércia e a renúncia à autodefesa? O que faria qualquer cidadão que tivesse tiros diários contra a sua casa. Deveria simplesmente resignar-se, dormir num subterrâneo?
A ação israelense foi apresentada como um “assassinato”, e não como a morte de um inimigo com mãos manchadas de sangue. Era público e notório que ele era responsável por uma série de assassinatos, dos quais, aliás, jamais negou a responsabilidade. Logo, o responsável de assassinatos foi “assassinado”. Aliás, o próprio Estado de Israel postou um vídeo mostrando a explosão de seu veículo, como alvo propriamente militar.
Outro fato particularmente notório foi a insistência que se repete continuamente a propósito do número de mortes civis do lado dos palestinos. É como se esse fosse o critério dirimente para a discriminação dos “justos” e “injustos”. Nesse sentido, o Hamas tem sabido manipular a mídia através de jornalistas coniventes.
Uma tática militar utilizada pelo Hamas consiste na utilização de escudos humanos, de modo que um alvo militar termine atingindo civis. As Forças Armadas de Israel não têm como alvos os civis, mas os militares, onde quer que se escondam. E eles se escondem em residências civis, em zonas altamente urbanizadas, lá armazenando armas e munições, com o objetivo de que civis sejam mortos para que apareçam midiaticamente como “vítimas”. Diz-se que o quartel-general do Hamas se encontra nos subterrâneos de um hospital, o que fala por si mesmo de sua preocupação com os “civis”. Por outro lado, os foguetes lançados contra Israel têm como alvo os civis, precisamente.
Na contabilidade de mortes civis, as fontes do Hamas não somente omitem esses dados, como, por si só, não possuem nenhuma credibilidade. No último confronto em Gaza, a própria ONU foi conivente com a mentira. Foi noticiado com estardalhaço que as Forças Armadas israelenses tinham bombardeado a sede local da ONU. Isso foi repetido à exaustão. Quando o desmentido ocorreu, pela própria ONU, um mês depois, a antipatia por essa ação israelense já estava arraigada. Alguns jornais, após terem dado manchetes ao fato da “destruição da sede da ONU por forças israelenses”, relegaram a páginas interiores minúsculos espaços de restabelecimento da verdade dos fatos.
Qual seria, pois, a diferença entre as fontes noticiosas israelenses e do Hamas? A credibilidade advinda de uma democracia, contrastando com um regime político de tendências teocráticas. Informações podem ser verificadas ou não. Israelenses podem se manifestar livremente contra as suas próprias Forças Armadas, criticando, por exemplo, a condução militar contra Gaza ou discordando da inércia das autoridades israelenses em caminharem para um verdadeiro acordo com os palestinos. Nada disso é possível nos territórios controlados pelo Hamas.
Dado particularmente significativo foi a barbárie mostrada em foto por militantes do Hamas contra supostos colaboradores israelenses. Foram assassinados na rua, com a maior crueldade e, depois, mostrados sendo arrastados por motos, como um exemplo. Exemplo de quê? De crueldade? Se fossem espiões deveriam ser julgados, com direito à defesa.
Outro caso particularmente gritante é a simpatia pela Turquia, cujas manifestações anti-israelenses são acolhidas acriticamente. Ela fala de “massacre”, “limpeza étnica” etc. Trata-se de um caso particularmente patológico, exemplo de esquizofrenia profunda. Limpeza étnica fez o Estado turco contra os armênios, assassinando milhões deles, em um genocídio inaugural do século XX. Até hoje, a Turquia se recusa a reconhecer esse fato.
Ademais, a Turquia não reconhece internamente a sua minoria curda, recusando-lhe um Estado autônomo. Os curdos não possuem Estado e são sistematicamente agredidos. Os ataques militares não respeitam nem as fronteiras dos países vizinhos, com incursões militares e bombardeios, no Iraque e na Síria, contras as populações curdas. Agora, se arvora em representante dos palestinos. Por que não reconhece o Estado curdo? Por que não interrompe seus assassinatos, bombardeios e incursões militares?
Não convém esquecer que o Hamas, ao contrário do governo palestino da Cisjordânia, liderado por Mahmud Abas, não reconhece o Estado de Israel e prega a sua destruição pela violência. A convivência entre israelenses e palestinos, baseada em dois Estados independentes, não poderá se fazer senão sob a forma de um reconhecimento mútuo, o que passa, evidentemente, pelo abandono recíproco dos preconceitos de ambas as partes.
Não é denegrindo Israel nem apregoando a sua extinção que se chegará lá. O antissionismo é uma forma recente do antissemitismo politicamente correto. Não é com ele que se alcançará a paz.
Fonte: O Globo, 03/12/2012
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