“Jamais atribua à malícia aquilo que pode ser adequadamente explicado pela estupidez”, frase epônima (atribuída a Robert J. Hanlon) que ilustra perfeitamente como se devem considerar os desmandos da economia brasileira. Acham que a degradante situação fiscal do Brasil resulta das artimanhas astutas de Arno Augustin? Pensam que Guido Mantega é maroto quando afirma que a súbita desvalorização do real é fruto do fortalecimento do dólar mundo afora? Pensem novamente. Pensem em Hanlon.
O Brasil registrou o pior resultado fiscal para o mês de agosto na história. Estamos firmemente entranhados no território do déficit primário, coisa do passado, estilo anos 90, com um crescimento dos gastos públicos de quase 30% no mês. Vá lá que a presidente Dilma não goste de austeridade, fala mal da austeridade para quem quiser ouvir, inclusive para a chanceler alemã, Angela Merkel, num inominável gesto de falta de malícia. Mas não precisávamos ir tão longe, não era necessário nos colocarmos tão próximos da queda, cada vez mais perto do rebaixamento da classificação de risco. Ou precisávamos? Confesso que já não sei, tamanha a confusão da economia brasileira.
Sem muito o que dizer de diferente neste artigo publicado às vésperas do primeiro turno – pesadelo para qualquer colunista -, andei relendo o que escrevi neste espaço nos últimos quatro anos. A conclusão: a bagunça econômica certamente não se deve a qualquer malícia ou esperteza do governo. Foram atos sequenciais de… bem, chamemos de “falta de bom senso”. Augustin, o chefe do Tesouro, diz que é possível alcançar a meta fiscal de 2014 e que os resultados apresentados não são tão ruins quanto parecem. Falta de bom senso exemplar.
O Brasil tem um rombo nas contas públicas. O Brasil também tem um rombo nas contas externas. Como constatou o FMI no mais recente World Economic Outlook (WEO), tínhamos um superávit na conta corrente de 1,3% do PIB em 2006, que se transformou em déficit de 3,6% do PIB em 2013. Isso equivale a US$ 81 bilhões,valor que, em termos absolutos, só fica atrás dos EUA e do Reino Unido, países diretamente afetados pela crise financeira de 2008. Países que, além de apresentarem claros sinais de recuperação, têm moedas ainda consideradas fortes, moedas de reserva internacionais – o dólar, a libra. Quem quer reais às vésperas das eleições brasileiras?
O FMI também destacou que, com um déficit externo dessa magnitude, o Brasil aproxima-se da zona de perigo, aquela em que qualquer soluço nos mercados globais pode se transformar em fuga de recursos do país. Ou seja, em mais desvalorização do real e uso ainda mais amplo das reservas internacionais para conter o enfraquecimento da moeda. Com a inflação no nível em que está, flertando sistematicamente com o teto do regime de metas, 6,5%, o Banco Central não pode se dar ao luxo de fazer outra coisa. Não chegamos até aqui por malícia.
Fica estabelecido, pois, que enfrentamos situação conhecida como “déficits gêmeos”: um rombo nas contas públicas, outro na conta corrente. Agora, vejam o que mais o FMI tem a dizer. Num dos capítulos analíticos do recém-divulgado WEO, há sólidas evidências de que o investimento público em infraestrutura aumenta o nível de atividade tanto no curto quanto no longo prazo. Isso sugere que, para países que têm muita necessidade de infraestrutura a fim de alcançar patamares mais elevados de crescimento, não há melhor momento do que o atual, quando as taxas de juros internacionais são baixas e assim devem permanecer. Nessas condições, projetos de investimento financiados por endividamento público podem ter grandes efeitos sobre o crescimento sem aumentar muito a relação dívida/PIB. Contudo, é preciso contar com recursos da poupança pública, o que não temos.
O Brasil desperdiçou inúmeras possibilidades nos últimos anos que poderiam ter posto o país em outro patamar de crescimento, de solidez. Jogou fora a chance de aumentar o investimento público com recursos da poupança inexistente do governo.
É muita malícia, não?
Fonte: O Estado de S.Paulo, 03/10/2014.
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