Tipo de transporte paga imposto maior do que caminhão
A burocracia, que no Brasil afeta todos os setores da economia, é ainda mais perversa no ambiente marítimo. O excesso de papelada trava os negócios, provoca atrasos e custos que seu principal concorrente, o caminhão, não tem. Na avaliação de especialistas, esse é um dos principais problemas da cabotagem, o transporte de cargas por mares do Brasil, tema da série multimídia do GLOBO que começou hoje no jornal e no “site”.
Especialistas e empresas do setor confirmam: enquanto uma carga transportada por caminhão precisa de quatro documentos para atravessar o Brasil, na cabotagem são necessários 12. Só há um sistema de informações no transporte rodoviário, enquanto no transporte marítimo são quatro que, diga-se de passagem, não se comunicam. Nem mesmo iniciativas como o Porto Sem Papel do governo federal resolvem, dizem analistas, pois o programa apenas eliminou a necessidade do documento em formato físico, mas manteve o elevado número de exigências.
— A quantidade de informações, documentos e dados que pedem de mim é impressionante. No caminhão é muito menor, isso afeta a concorrência — afirma Vital Lopes, presidente da Log-In, uma empresa de cabotagem.
A burocracia é um dos pontos que impedem o setor de crescer no mercado de carga fracionada, ou seja, quando um contêiner tem pequenos pacotes de diversos clientes:
— Se você for despachar algo pelo Fedex, DHL ou por algum serviço de transporte aéreo, não pedem nada. E aqui, além dos documentos, temos que pagar a alíquota cheia do ICMS, enquanto que no aéreo a taxa é de 4% — diz Gustavo Costa, gerente de cabotagem da Aliança.
Além dos custos indiretos da burocracia, há os custos diretos. Para cada nota fiscal emitida, a empresa de cabotagem precisa pagar uma Taxa de Utilização do Mercante (TUM), que remunera pelo uso do sistema, em R$ 20 por nota. Ou seja, se em um contêiner tiver pacotes de 200 clientes diferentes, serão 200 taxas a serem pagas, no total de R$ 4 mil.
Toda essa burocracia ocorre antes do navio começar a navegar. Em alto-mar, os problemas aumentam:
— Há prazos que só existem para a cabotagem, como a necessidade de se fazer o pedido de combustível com 15 dias de antecedência, mesmo com o monopólio da Petrobras no segmento. E, caso o navio atrase por qualquer motivo, outro pedido precisa ser feito, gerando um trabalho extra e mudança nos preços, pois a cotação é diária. Assim, muitas vezes perdemos muito tempo no mar cuidando da burocracia — diz o capitão Carlos Câmara, comandante do navio Américo Vespúcio, da Aliança, no qual o GLOBO navegou de carona por 17 dias de Santos a Manaus.
Mas o grande problema do setor com o combustível é o preço. O óleo combustível que movimenta os navios tem cotação internacional, ao contrário do diesel, que, para controlar a inflação, é subsidiado pelo governo federal. E este é o principal insumo da cabotagem, representando cerca de 50% dos custos, pois um navio pode consumir até 70 toneladas de óleo por dia. A um preço de US$ 600 dólares a tonelada. O que equivale a um custo diário de cerca de R$ 95 mil.
— Hoje o preço do óleo combustível é 30% mais caro que o valor do diesel. Não queremos subsídios, apenas isonomia em relação ao nosso principal concorrente — afirma Cleber Lucas, presidente da Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (Abac).
Além disso, conta Lucas, o setor recolhe tributos que não incidem na navegação internacional (o chamado longo curso), entre eles Pis/Pasep e Cofins. Ele ainda lembra que há outros problemas, pois o Fundo da Marinha Mercante tem R$ 850 milhões administrados pelo governo federal, que não libera o dinheiro na velocidade que o setor precisa para renovar a frota fabricando navios no Brasil ou reformar embarcações. O fundo é formado pela Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM), sustentada basicamente pelas rotas estrangeiras, pois há isenção para as rotas de cabotagem com origem ou destino Norte/Nordeste, um dos raros benefícios para o setor, dizem os especialistas.
Segundo o presidente da Abac, as principais iniciativas recentes do governo para desburocratizar o setor ainda não avançaram. Uma delas é a Comissão Nacional de Autoridades nos Portos (Conaportos), lançada pela presidente Dilma Rousseff no fim de 2012 dentro da proposta de se incentivar o setor de transportes do país.
Outro custo alto envolve a praticagem, segmento que reúne os profissionais que auxiliam os comandantes dos navios nas manobras dos portos, os práticos. Também em dezembro de 2012, o governo criou uma comissão para regulamentar esse serviço, considerado, por especialistas e empresas, um dos mais caros do mundo e que melhor remunera seu pessoal. Há quem diga que os práticos recebem até R$ 300 mil por mês, embora a categoria negue, admitindo ganhos que chegam à casa dos R$ 80 mil mensais, justificado pela complexidade da atividade.
A Comissão Nacional de Assuntos de Praticagem (CNAP) até chegou a avançar, propondo, em algumas situações, reduções de 80% no valor do serviço — caso do porto do Rio. Mas a categoria recorreu ao Judiciário e conseguiu suspender a negociação, com o argumento de que o objetivo da iniciativa é tabelar o serviço que, apesar de monopolista, deve seguir as regras da “iniciativa privada”.
Os armadores de cabotagem reclamam dos custos que podem inviabilizar alguns tipos de transporte:
— Atuo na cabotagem de granéis, no transporte de sal de Areia Branca (RN) para o Sul. O frete do transporte do navio com oito mil toneladas, número abaixo de nossa capacidade de 217 mil toneladas, devido ao baixo calado do porto de Porto Alegre, sai por R$ 500 mil. Mas os práticos cobram pela manobra no porto da capital gaúcha R$ 80 mil, ou seja, 20% do valor total do frete. Isso inviabiliza o transporte, pois o caminhão, apesar de consumir mais combustível e poluir mais, não tem estes custos — afirma Leonardo Ferraz de Oliveira, da Lyra Navegação Marítima.
Ricardo Falcão, presidente do Conselho Nacional da Praticagem (Conapra), afirma que a questão dos preços não procede, argumentando que a cabotagem paga no Brasil menos que os navios estrangeiros. Ele cita ainda que Petrobras e Vale, que representam 80% da cabotagem do país, não reclamam dos preços.
— Os armadores de contêineres reclamam dos valores da praticagem, mas nunca abrem seus preços para vermos se o serviço é caro. O prático é a presença do estado à bordo do navio e isso incomoda essas empresas — disse Falcão.
Ele nega haver burocracia na praticagem, acusação de algumas empresas, que afirmam que isso pode atrasar por um dia a navegação no Amazonas ou em horas Sepetiba, no Rio.
O Ministério dos Transportes — que recentemente voltou a coordenar a cabotagem, que antes estava com a Secretaria Especial de Portos, em um empurra-empurra entre os órgãos do governo — disse, em nota, que o setor é estratégico para o país. A pasta afirma que libera recursos do Fundo da Marinha Mercante para a construção de embarcações, com financiamento subsidiado de até 90% do valor das embarcações, com juros com base na TJLP (atualmente em 5% ao ano) e financiamento em 20 anos. Outra iniciativa é a isenção do AFRMM para rotas que passem pelo Norte ou Nordeste, que custa 10% sobre o valor do frete. Segundo a pasta, isso trouxe alívio de R$ 600 milhões entre 2011 e 2013.
“Estudos detalhados poderão identificar potenciais avanços no fomento ao setor, de forma a estabelecer incentivos consistentes que sejam direcionados à ampliação do transporte por cabotagem e à redução dos fretes praticados”, respondeu o ministério quando perguntado sobre formas de se reduzir a burocracia do setor.
Mesmo assim, a cabotagem cresceu 9,8% no primeiro semestre. Um dos motivos é a busca das empresas por serem mais ecológicas. João Carlos Gagetti, gerente de Logística da Moto Honda da Amazônia, disse que migrou para a cabotagem para ajudar a meta global da firma de reduzir em 30% a emissão de CO2.
— Além da redução das emissões de CO2 em torno de 20%, registramos uma economia de 5% no transporte de motocicletas em dois anos e, agora, 30% de nossa produção da Amazônia já sai por navios.
Fonte: O Globo
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