Não são raros os projetos de lei que nascem – em Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas estaduais e na Câmara dos Deputados – com a melhor das intenções, mas sem considerar o respectivo resultado prático. A lição básica de Milton Friedman para a análise de políticas públicas parece nunca ter tido espaço no debate político brasileiro: julgam-se as leis por suas intenções, e nunca por seus resultados. E, desta vez, a vítima dessa miopia julgamental é justamente a economia digital.
O Projeto de Lei 1.179 de 2020, aprovado no Senado Federal no último dia 20 de maio, está pendente de análise e sanção do Presidente da República para sua efetiva promulgação como norma jurídica válida. E por que dizer que a economia digital foi vítima? O texto votado obriga empresas de intermediação de transporte privado de passageiros e entregas por aplicativo a reduzir em 15% o valor de suas taxas cobradas pelo serviço de intermediação. Além disso, proíbem-se novos ajustes de preços até 30 de outubro deste ano.
Para o cidadão desavisado das possíveis consequências, porém bem intencionado e sensível à crise do Covid-19, tal projeto pode até soar razoável e justificado em virtude da pandemia que assola o País. Entretanto, é necessário sempre lembrar daquilo que se vê e daquilo que não se vê enquanto fruto de uma decisão. Ou seja, é necessário pensar o efeito colateral da aprovação do projeto sob todas as possíveis perspectivas.
De um lado, pode-se considerar que, com a redução de 15% na taxa cobrada pelos aplicativos, mais dinheiro poderá ficar com os bares, restaurantes e motoristas que estão trabalhando e recorrem à tecnologia para encontrar seus clientes. Mais dinheiro em caixa: essa é a consequência de curtíssimo prazo. Contudo, a análise precisa ir além: o que será que pode acontecer com todo o ecossistema a partir da intervenção em questão?
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Aplicando a mesma imposição de redução da taxa a empresas com modelos de negócio e estratégias comerciais totalmente diferentes, gera-se um desequilíbrio comercial que pode resultar na falência ou na suspensão de atividades dessas empresas. Por quê? Surgem novos aplicativos, novas iniciativas todos os dias ao redor do mundo. Cada proposta diferencia-se das anteriores buscando entregar maior valor agregado ao usuário (entenda-se aqui “usuário” como o consumidor e o trabalhador parceiro). Existem, por isso, não só gigantes do setor, como inúmeras startups – pequenas e médias empresas começando suas operações – com baixa capacidade de absorção do corte repentino de suas receitas.
Algumas empresas de intermédio de entregas, por exemplo, estão em momento de plena expansão, com margem já reduzida para conseguir competir com seus concorrentes e ganhar mercado. Obrigar essas mesmas empresas a reduzir ainda mais sua margem de faturamento pode representar a total impossibilidade de continuidade das operações no mercado. Percebe-se, assim, com um olhar um pouco mais atento às consequências não tão diretas da norma jurídica, que aquele projeto de lei, originalmente formulado por ótimas intenções, pode acabar com resultados catastróficos. Quebrar novas empresas que surgem agora representa justamente aquilo que deveríamos evitar: a concentração de mercado nos gigantes já consolidados.
+ Por que liberdade econômica é importante?
Em análise ainda mais abstrata, pode-se considerar tal projeto como mais um daqueles elementos que geram enorme insegurança jurídica a quem pretende investir por aqui e explicam o subdesenvolvimento brasileiro. O momento é crítico: as crises política, econômica e sanitária geram suficientes dúvidas naqueles que pensam em arriscar seu patrimônio no Brasil. Com a quebra de contratos institucionalizada por lei, os investimentos fogem e os investidores vão para onde há mais segurança. Regras arbitrárias, onerosas e imprevisíveis acabam custando caro demais no longo prazo: esse é o resumo da História do nosso País.
Nelson Rodrigues foi certeiro ao dizer que subdesenvolvimento não se improvisa: é obra de séculos. No Brasil, parece que a estabilidade institucional, a previsibilidade de regras e o respeito aos contratos firmados é a exceção, não a regra (como, de fato, deveria ser). O Projeto de Lei 1.179/20 é só mais uma manifestação abjeta da mentalidade curto-prazista que guia nossos tomadores de decisão em Brasília. Que seja vetado enquanto há tempo, porque o resto do País já não pode mais esperar. Está na hora de abraçar a liberdade para a economia digital e de, finalmente, adentrar o século XXI em termos institucionais.