Gilbertinho, diminutivo que Lula usa para se referir a Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, tem assumido mais o papel de exorcista que de ex-seminarista ao fazer periódicas avaliações da presidente, que despacha a poucos metros dele no Palácio do Planalto. Em vez de um Te Deum de Ação de Graças em louvor à administração que chega ao término do primeiro mandato, o ministro acaba de “exorcizar” mais alguns demônios que perseguiram a mandatária nos últimos quatro anos, dentre eles, “a falta de diálogo com os principais atores na economia e na política”, que teria levado ao pouco avanço em demandas dos movimentos sociais, particularmente nas frentes da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas.
A senadora Marta Suplicy também decidiu não cantar um Hosana nas Alturas e ao deixar de supetão o cargo de ministra da Cultura atirou no coração do governo, simbolizado pela área econômica, para a qual defende uma nova equipe capaz de resgatar “a confiança e a credibilidade” e comprometida com “a estabilidade e o crescimento”.
Causa perplexidade o fato de o canhonaço partir de integrantes do grupo comandado pela maior liderança do PT, o ex-presidente Luiz Inácio, em torno de quem os dois ministros chegaram a entoar, meses atrás, o canto “Volta, Lula”. Digamos que não tenha havido da parte do guru conhecimento prévio dos balaços ou mesmo autorização para tal “campanha negativa” ser desfechada. Sobra a hipótese de um sinal amarelo aberto no semáforo lulista, espécie de aviso para que a presidente Dilma Rousseff mude os rumos do governo, a começar por profunda reforma na economia e maior envolvimento com a esfera política e a sociedade organizada. A verdadeira razão não seria essa? A mandatária precisa substituir as cartas de seu desgastado baralho, tarefa que exigirá mudança de atitude.
Neste ponto, a pergunta central, recorrente nas esferas política e produtiva, dispara outras: Dilma mudará a índole? Dará mais autonomia aos principais ministros? Descentralizará a gestão? São questões complexas, ainda mais quando o axioma criado pelo conde de Buffon em 1753 na Academia Francesa – le style est de l’homme même – continua na ordem do dia.
Em se tratando da presidente, pelo que se ouve e pelo que se sabe, emerge um perfil de forte personalidade, ciosa de seu mando, centralizadora, atenta aos detalhes, de reações ágeis, em quem os psicólogos, pela clássica classificação de Hipócrates, poderiam enxergar traços temperamentais mais próximos dos tipos coléricos e sanguíneos (em que a força de excitação é maior ou iguala à da inibição) e mais distantes dos melancólicos e fleumáticos. Mesmo assim, há de se apostar na hipótese de mudanças (“novas ideias”), conceito que ela própria expressou na campanha. E isso pressupõe alteração na forma de pensar e agir. Significa intuir que ela vestirá o manto reformista. Ora, para cumprir essa missão o reformador carece, como lembra Samuel Huntington, de habilidade política mais alta que a habilidade do “revolucionário”, porquanto este precisa ser um político magistral para obter sucesso; já “o reformador de sucesso sempre o é”, diz o professor.
A presidente Dilma atravessou o quadriênio do primeiro mandato ensimesmada e desconfiada da política. Teve de abrir espaços para partidos e líderes, mas o fez sob o império de prementes conveniências, procurando manter, porém, certa distância dos políticos. Se o estilo é a pessoa e se ela aprecia conservar o perfil técnico, é bastante compreensível sua maneira de administrar o apetite da política. Acontece que nas democracias representativas os governos não sobrevivem sem as redes de comunicação com a sociedade, sem os “pisca-piscas”, os sinais de alerta emitidos pelos circuitos políticos, representados por partidos e Congresso.
Alguns governantes soçobraram porque se isolaram em seus palácios. Lembrem-se Jânio e Collor. Poderosos, mas solitários, padeceram a “solidão do poder”. De Gaulle, com seu gaullismo que elevou ao extremo a ideia de autossuficiência da França, refugiava-se no Eliseu. Nixon mantinha-se afastado do público, da imprensa e dos partidos, inclusive do seu, o Republicano, transformando Camp David, a casa de campo, numa fortaleza blindada. Stalin, que se julgava onisciente e infalível, vivia trancado no Kremlin. Bajulados por uma “sociedade de corte”, recusando-se a ouvir as demandas sociais e políticas, esses governantes deram vazão ao que se convencionou chamar de “autismo de Estado”.
Nossa presidente não se pode ocultar na muralha do isolamento. Principalmente numa quadra em que deverá tomar decisões duras, partindo do princípio de que será impraticável combinar sacrifícios econômicos e recessão transitória com crescimento, expansão do emprego e melhoria de programas sociais. Deve estar preparada para sentir o governo descer na avaliação popular, manter-se por um tempo nesse nível e, em seguida, recuperar os pontos perdidos. Essa tarefa exige um duro programa de ajuste na economia, situação que obrigará a governante a evitar a deterioração de seu peso político. Donde se infere a necessidade de canais desobstruídos entre o Palácio do Planalto e as Casas congressuais. Urge ainda considerar que o Brasil passou a conviver com o ciclo das ruas. E é lógico que nessa quadra de ampla locução social os governantes de todas as instâncias não podem estar longe das massas.
Sob essa teia de alterações na fisionomia social e diante de pressões políticas que, a cada dia, se tornam mais agudas, não resta à presidente da República alternativa que não seja a de criar sintonia fina com o clamor das ruas e a Realpolitik. Será que os canhões de Gilberto Carvalho e Marta Suplicy continham essa munição? Se a intenção era alertar S. Exa. sobre as nuvens plúmbeas que se descortinam no horizonte, o recado foi dado.
Mas a dúvida persiste: por que o ataque público? Por que o PT atira contra o PT?
Fonte: O Estado de S.Paulo, 16/11/2014.
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