O potencial do petróleo extraído no mar, das camadas pré-sal, está produzindo uma polêmica curiosa: seria mesmo “espoliação” do direito do Rio de Janeiro – por extensão, de São Paulo e Espírito Santo, até agora – a mudança do modelo atual de distribuição de royalties, que estenderia o benefício a todo o País? Detalhe curioso da polêmica é que ela ocorre à margem da pergunta fundamental que deveria alicerçar a questão: qual é a lógica que credencia Estados e municípios a terem participação na receita do petróleo extraído a dezenas ou centenas de quilômetros de suas praias, onde não existe nem pode existir nenhuma participação de Estado ou município no empreendimento, em extensões oceânicas sequer territoriais brasileiras e, portanto, muito menos territoriais estaduais e municipais – estão apenas sob jurisdição econômica brasileira?
É estranha a pretensão, à revelia de amparo racional, de Estados e municípios se considerarem produtores do petróleo a 100/200/300 km do litoral – uma pretensão sem fundamento objetivo, que estende à imensidão oceânica a concepção territorial federativa, político-administrativa, de inspiração essencialmente terrestre!
O § 1º do inciso XI do artigo 20 da Constituição de fato assegura a Estados, municípios e ao Distrito Federal (DF) participação no resultado da exploração do petróleo e gás em seu “respectivo território, mar territorial, plataforma continental e zona econômica exclusiva (ZEE)”. Mas, realisticamente, há sentido em considerar “respectiva” plataforma continental e “respectiva” ZEE de Estados e municípios as extensões oceânicas e seu fundo a tais distâncias do litoral? Ademais – e à margem da insólita “territorialidade oceânica” invulgar no mundo -, esse dispositivo constitucional assegura a participação aos Estados, DF e municípios em que ocorra a produção, mas não impede que o resto do Brasil também seja beneficiado por recursos que a lógica sugere ser de todo o povo brasileiro. A mudança do modelo não é, portanto, uma violência anticonstitucional.
O pacto federativo pressupõe autoridade, direitos e deveres. Que autoridade, que responsabilidades, que encargos legais inerentes aos Estados e municípios são exercidos pelos Estados e municípios ditos produtores de petróleo, nas águas e nas plataformas de produção, naquelas distâncias e nas circunstâncias tão especiais e complexas do empreendimento?
Se ocorrer um vazamento de óleo no mar, a tais distâncias do litoral, que atuação protetora cabe ao órgão ambiental do Estado e à defesa civil do município em cuja esotérica respectiva ZEE ocorreu o fato? Obviamente nenhuma, nem poderia caber. Tem o Estado ou o município (qual?) o direito de multar a empresa poluidora?
Caso aconteça um crime numa plataforma, caberá à polícia judiciária estadual investigá-lo e à Justiça estadual julgá-lo?
A situação reflete um caso típico de atribuições constitucionais concorrentes só no papel. Na prática são da União e não poderia ser diferente. É discutível a afirmação de que Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo “perderão” com a mudança do modelo. Na verdade deixarão de ganhar tudo que entendem seu, sem considerar um detalhe: ganhariam absolutamente nada se a União não tocasse o empreendimento. E a União é todo o Brasil.
O apoio em terra, as instalações industriais correlatas à questão (portos, refinarias, petroquímica) e as de transporte/escoamento devem ser tributados pela sistemática normal e é razoável que sejam onerados “a mais”, pelos encargos ambientais (e outros) porventura decorrentes. Mas atribuir a Estados e municípios direitos pela exploração do petróleo no oceano distante é manobra surrealista, contrária à conveniência do País como um todo. O argumento de que a exploração oceânica induzirá desenvolvimento no litoral, exigente de atenções estaduais e municipais, também soa falso: seria a primeira vez que o desenvolvimento gerador de progresso e renda local é visto como um mal a ser pago por todo o País… Se é realmente um mal, por que os Estados tanto se empenham por investimentos na petroquímica, em refinarias…?
No fundo, criou-se uma distribuição de royalties que, nos Estados e, sobretudo, em municípios, corre o risco de servir à “gastança” local. Essa possibilidade confere à controvertida distribuição desses recursos outro aspecto preocupante, a ser considerado não só para os royalties das camadas pré-sal, por ora virtuais, mas também ao já extraído em profundidades menores: o disciplinamento do seu uso, a ser circunscrito ao desenvolvimento econômico e social – educação, saúde, saneamento -, rigorosamente proibido qualquer desvio para custos correntes. Em particular para o custeio da máquina pública, tendência verossímil por força de nossa cultura patrimonialista e provável razão do “olho grande” nos royalties, em muitos municípios.
A opinião já expressa pelo presidente da República, de que os futuros royalties da camada pré-sal deverão ter aplicação nacional, portanto sem relação com a singular fantasia territorial-oceânica estadual e municipal, é coerente com a realidade: o petróleo a ser algum dia extraído das camadas pré-sal deverá beneficiar todo o povo brasileiro.
É bem verdade que não convém ampliar a já grande concentração de recursos na União, incoerente com um modelo federativo que se pretenda saudável, mas por que não estabelecer uma divisão pelas unidades federadas, que atenda racionalmente todo o País?
A essa questão se aplica com muita propriedade o slogan da moda nos anos 50: O petróleo é nosso. No caso em foco neste artigo, nosso, brasileiro, não fluminense, paulista ou capixaba…
(O Estado de SP – 31/08/2009)
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