“Não é possível esperar apenas pelas iniciativas particulares e deixá-las atuar desarticuladamente, sem ligação entre si. Por que esperar apenas pela iniciativa privada? Por que não deverá o governo provocar ou chamar a si incumbências que não a interessam ou são superiores às suas possibilidades?” Forte afirmação e não menos fortes perguntas.
Permita-me o eventual leitor uma impertinência: em qual das últimas oito/nove décadas de nossa História o texto acima teria sido escrito? A resposta está adiante neste artigo. Mas me atrevo a levantar a hipótese de que haja, de longa data, uma expressiva corrente de opinião no “Brasil profundo” que subscreve – hoje -, se não a precisa formulação acima, o espírito que a anima e cuja chama permanece viva entre nós.
Dois exemplos recentes apenas para ilustrar o ponto.
Primeiro, a sistemática campanha contra as privatizações dos anos 1990 (como sendo dilapidações do “patrimônio público”) e sua demonização como expediente eleitoreiro em 2002, 2006 e 2010 – para a qual faltou resposta à altura.
Segundo, o longo período – além de Lula, mais quase três anos já no governo Dilma – até que as várias correntes internas do partido no governo e aliados pudessem aceitar, após alguns experimentos malogrados, a ideia de concessões de maior vulto ao setor privado na área de infraestrutura – o que, felizmente para o país, começou a ocorrer no final do ano passado. Mas tempo precioso foi perdido pelo Brasil – em termos de menor investimento e menor crescimento por dúvidas hamletianas que têm longa história entre nós.
Para ficar apenas no período “mais recente”: as duas grandes guerras do século passado e em particular a Grande Depressão dos anos 30 marcaram uma tendência ao intervencionismo estatal que se observou em escala internacional e, obviamente, encontrou eco e experiência pretérita no Brasil. O que houve de novo na natureza da intervenção que se esboçou a partir dos anos 30 foi sua utilização parcial e incipiente para tentar uma aceleração no ritmo de investimento em infraestrutura e indústria de base, visando a uma transformação da estrutura produtiva, diferente da que o setor privado realizaria – ou não – na ausência da intervenção governamental.
Como resultado, dentre as questões recorrentes mais relevantes de economia política nas últimas décadas no Brasil – até o presente – estão, em maior ou menor grau, diferenças de percepções (menores hoje do que no passado) quanto à forma e à extensão tanto da participação externa quanto da intervenção do setor publico na vida econômica.
Não menos importante foram – e continuam sendo – as diferentes percepções (também menores hoje que no passado) acerca das melhores formas institucionais de reduzir e/ou arbitrar conflitos de interesses derivados da vertiginosa expansão do número de assalariados urbanos no país ao longo das últimas sete décadas. O Brasil é hoje o quarto maior país do mundo em termos de população urbana. As demandas daí derivadas são extraordinárias.
As associadas exigências de maiores e melhores investimentos em infraestrutura e em capital humano são consideradas como “intensivas em Estado”. Mas em muitos países do mundo de hoje governos encontram dificuldades crescentes para fazer face às expectativas de suas populações. Educação, saúde, transporte, segurança, entre outros serviços que o público por várias décadas esperava que seus governos provessem, estão ficando além dos orçamentos públicos razoáveis ou, ao menos, além daquilo que parcelas expressivas da população consideram aceitável em termos de impostos, taxas e contribuições adicionais para financiar a provisão de tais serviços. Qualquer semelhança com países que conhecemos melhor não é mera coincidência.
Voltando ao início, a afirmação e as duas perguntas do parágrafo que abre este artigo são de uma ilustre e influente personalidade da vida pública brasileira (Edmundo Macedo Soares e Silva) e foram publicadas em dezembro de 1944 no Boletim do Círculo de Técnicos Militares sob o título “A Engenharia Brasileira no Projeto de Volta Redonda: Um Capítulo do Planejamento Econômico”.
Passaram-se quase 70 anos. Temos uma relativamente longa história de acertos – e de desacertos – no combinar o público e o privado (doméstico e internacional) na promoção do desenvolvimento econômico e social do país.
Tenho para mim que as épocas em que mais avançamos, ou que tivemos mais acertos, foram as épocas em que as decisões envolvidas tinham menor vezo ideológico, mais transparência, mais confiança na cooperação público/privado e mais pragmatismo. E que perdemos tempo precioso, especialmente nos investimentos em infraestrutura, quando foi mais forte o peso da ideologia, da falta de transparência e da desconfiança entre os dois setores.
Em suma, e para concluir, o que se requer é uma combinação de um Estado eficiente, que viva sob o primado da lei e seja administrado por governos obrigados a prestar contas a seus cidadãos.
Não é necessário, por certo, “apenas esperar” pela iniciativa privada, mas é necessário, sempre, que governos expliquem e prestem contas ao Parlamento e aos seus cidadãos das razões, por exemplo, que podem levá-lo a conceder acesso privilegiado a recursos escassos a determinados grupos específicos (por meio de subsídios, créditos, isenções e proteções comerciais). Ou quando resolvem “chamar a si incumbências” que consideram que não poderiam ser deixadas a outrem.
Mesmo porque, neste último caso, é possível que uma discussão aberta, transparente e não ideologizada mostre situações em que há “incumbências”, existentes ou programadas, que poderiam estar além das possibilidades técnicas, humanas, financeiras e fiscais do próprio Estado – e suas empresas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 12/01/2014
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