“Apò mekhanês theós” foi como Aristóteles definiu as figuras que surgiam do nada para retirar de cena um personagem em conflito nas tragédias. A expressão, mais conhecida pela versão em latim deus ex machina, poderia no Brasil de hoje ser traduzida por “reforma política”. São as palavras usadas para encerrar as discussões que conflagram as famílias nas ceias natalinas, os vizinhos nas reuniões de condomínio e os próprios parlamentares nas casas legislativas. Lá estava a indefectível “reforma política” no discurso do presidente do Senado, Renan Calheiros, pouco antes da votação que determinou o afastamento de Dilma Rousseff na manhã da última quinta-feira. Está claro para todos que, da forma como foi estabelecido no Brasil, o presidencialismo de coalizão estimula a corrupção e a apropriação do Estado por interesses privados, quando não a simples roubalheira. Foi assim nos governos desde a redemocratização – talvez desde as sesmarias. Não deverá ser diferente no governo Temer. A solução todos buscam em Ésquilo, Eurípides ou Aristófanes: chamem por favor a “reforma política”. Qual o sentido?
O presidencialismo nasceu imperfeito, e a história ensina como é difícil consertá-lo. O melhor exemplo é o documento que o criou: a Constituição americana, aprovada em 1787 pela Convenção da Filadélfia. Até aquele momento, não havia propriamente os Estados Unidos da América, mas uma confederação frouxa de 13 Estados. Foi o documento da Filadélfia que criou a Presidência, a Suprema Corte, a Câmara dos Representantes e o Senado, estabeleceu mandatos, regras de escolha e regulou o equilíbrio dos Três Poderes. Depois de aprovado na Convenção, precisava ser ratificado por nove dos 13 Estados – uma batalha que se estendeu por quase dois anos. Em julho de 1788, já tinha apoio de dez Estados. Mas Nova York, maior centro comercial do país, era crucial. O debate público que precedeu a aprovação – pelo placar apertado de 30 a 27 – resultou numa das obras mais importantes da ciência política, Os artigos federalistas. Os 85 textos, publicados em jornal, foram assinados pelo pseudônimo coletivo Publius, que reuniu três artífices da Constituição, os criadores do presidencialismo: James Madison, Alexander Hamilton e John Jay.
Visionários, desde o início eles vislumbraram uma União forte, cujo objetivo era conquistar terras e mercados. Mas o poder na confederação estava fragmentado nos congressos estaduais, a que se subordinavam governantes e juízes. O principal temor de Madison e Hamilton era o “facciosismo” – não muito diferente da atual “polarização”. Era o risco de um conluio entre facções no Congresso impôr interesses paroquiais sobre os nacionais e enfraquecer o país. Desconfiavam da democracia direta, que opunham ao sistema representativo, tido como imune à “tirania do Legislativo”. Formularam um equilíbrio delicado entre os Três Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, com interferências limitadas de um no outro. “A grande garantia contra uma concentração gradual de vários poderes no mesmo braço consiste em dar aos que administram cada poder os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para resistir aos abusos dos outros”, escreve Madison no “Federalista nº 51”. “A ambição deve poder contra-atacar a ambição. O interesse do homem deve estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo.”
Nos “Federalistas”, os autores elaboram respostas às objeções dos adversários da Constituição. Nem todas são convincentes, tantas são as lacunas e contradições – da falta de uma Carta de Direitos Fundamentais à escandalosa manutenção da escravidão. Mesmo que ela tenha, em quase 230 anos, adquirido a aura de um texto sagrado, os próprios autores reconheciam as limitações da Constituição. A maior virtude deles é que não se julgavam virtuosos. Sabiam que a política mais eficaz precisa reconhecer a imperfeição. “O que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana?”, diz Madison. “Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos. Ao moldar um governo que deve ser exercido por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisto: é primeiro preciso capacitá-lo a controlar os governados; em seguida obrigá-lo a controlar-se a si próprio.”
Neste momento em que o impeachment testa no limite nossas instituições e imobiliza o Brasil, o recado dos Federalistas é fundamental. Haverá Cunha, Maranhão, Renan, Zavascki, Lewandowski. Haverá Dilma. Haverá choque entre todos – e cada um sempre defenderá o seu. Não há reforma política capaz de mudar isso. O importante é que as instituições resistam a seus ocupantes. Eis alternativa, nas palavras de Madison: “A justiça é a finalidade do governo. É a finalidade da sociedade civil. Ela sempre foi e sempre será perseguida até ser alcançada, ou até que a liberdade seja perdida nessa busca”.
Fonte: revista “Época”, 15/05/2016
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