Saindo de uma monarquia patriarcal e escravocrata, transferimos aos cargos republicanos conteúdos aristocráticos da monarquia
Somos obrigados a falar uma só língua por um motivo óbvio: se cada indivíduo inventasse seu código de comunicação, ressuscitaríamos Babel. Múltiplas línguas e éticas engendram o caos e, no limite, a violência. É — como advertiu FH, mais como observador do que como participante — algo gravíssimo.
Línguas e éticas delineiam limites. Num nível profundo, são elas que nos falam. Roland Barthes dizia que “a língua não é nem reacionária nem progressista; ela é pura e simplesmente fascista.” Ninguém se lembra de ter aprendido sua língua materna, mas todos recordam suas lições de francês, italiano ou mandarim.
Sem uma única língua não se pode exercer o sumo da democracia: discordar. E sem reclamação e debate honesto, vivemos o nevoeiro que resulta de um imenso labirinto legal. Esse marco do nosso sistema político.
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Nesse plano há pontos capitais mas esquecidos. Eu posso ser contrário a um sistema político, mas devo ser honesto nos meus propósitos. Não posso ser um defensor dos pobres enriquecendo pelo compadrio com capitalistas; não posso ajudar a depor uma rainha sendo um rei suspeito dos mesmos delitos.
Se nos inspirarmos em Shakespeare, concordando que o mundo é um palco, diríamos que o texto dos dramas históricos é a moralidade ou a ética inspiradora do drama. Você só pode ser um personagem se tiver o propósito de sustentar (como mocinho, bufão, traidor ou bandido) a cena, levando-o ao seu arremate. Se, contudo, o seu objetivo era entrar na peça com a intenção de roubar a qualquer custo todas as cenas e, em seguida, destruir o palco e o teatro matando o autor da peça, então não há o que discutir.
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Essa analogia ajuda a enxergar a gravíssima crise que hoje vivemos. O colapso tem como centro um sistema de papéis amparados por uma estrutura burocrática destinada a manter privilégios. Meu lado antropológico sugere que o nosso republicanismo a usa e se recusa a levar avante os seus valores. Saindo de uma monarquia patriarcal e escravocrata, transferimos aos cargos republicanos os conteúdos aristocráticos vigentes na monarquia. A República não foi pactuada, ela foi “proclamada”. Um dado óbvio da crise é nossa dificuldade de unidade, de um acordo mais profundo do que o ganhar ou perder no Parlamento. Não chegamos nem a discutir qual seria o mínimo denominador nacional. Seria o mérito? A amizade? O cargo legalmente embasado nas piruetas jurídicas?
Onde seria ancorada a nossa vida pública? Nas biografias que desmoralizam os cargos; ou nos cargos que desmoralizam seus atores? Nossas práticas sociais destroem qualquer racionalidade. A vantagem de uma língua comum é poder discordar. A de uma moralidade é o controle do jogo político que não pode mais continuar fundado nos oportunismos do vale-tudo. Teoricamente, o interesse político esbarra na lei. Mas e quando ele deseja ser a própria lei?
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Qual seria a unidade de um povo (feito até anteontem de senhores e escravos; e de nobres e comuns) se até hoje alguns podem fazer o que bem entendem ignorando a igualdade? Todos são iguais, mas os inúmeros foros privilegiados transformam a igualdade em desigualdade.
O sistema legaliza, sem legitimar, um sistema de cargos obtidos numa competição eleitoral na qual — eis a imoralidade — os vencedores traem abusivamente seus projetos e promessas. O resultado é uma nomenclatura investida de desigualdades jurídicas, a qual não é mais aceita pela sociedade consciente que é ela quem paga o preço da pirâmide. A racionalidade do mercado inundou a sociedade e não se pode mais disfarçar o quanto se paga pela ética do compadrio, que impede passar a limpo os conflitos motivados pela aliança entre poder e dinheiro.
E o pior é descobrir que, mesmo quando descobrimos que as mais altas autoridades da cidade, do estado e do país se transformaram em assaltantes das instituições que deveriam governar, não chegamos ao fundo do poço.
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Impermeáveis aos requisitos racionais do diabolizado capitalismo cuja ética engendrou e estimulou o direito à diferença, à discórdia, à oposição, à competição e ao mérito, confundimos muitos direitos com legitimidade, muitas polícias com o controle do crime e inúmeros tribunais com acesso igualitário à Justiça. O resultado não antecipado de tantos controles é uma contaminação patológica, na qual se salvam todos os interesses, menos o do povo brasileiro.
PS: Volto a escrever neste espaço em agosto, mas, como a vida não cansa de me lembrar, há sempre o inesperado.
Fonte: “O Globo”, 28/06/2017
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