A charge do cartunista jordaniano Mahmoud Rifai correu mundo, difundida por sites e blogs de esquerda. Intitulada “Quem conquistou a Copa pela França”, exibe um barco de refugiados africanos do qual emerge um punho negro segurando a taça da Fifa —e, acima dele, a bandeira francesa da qual salta uma mão
que se apropria do troféu.
Superficialmente, trata-se de uma crítica da xenofobia e do racismo, tão comuns na Europa de hoje. De fato, é outra coisa, repetida sob formas similares em incontáveis textos e imagens.
A direita sempre diz que os terroristas são estrangeiros —mesmo quando se sabe que, em quase todos os casos, são cidadãos nacionais. Agora, a esquerda resolveu dizer que os jogadores da seleção francesa campeã mundial são estrangeiros –mesmo quando se sabe que todos são, obviamente, cidadãos franceses.
Leia mais de Demétrio Magnoli:
Rússia, campeã do mundo
Ideias fora do tempo
Ciro, uma análise de texto
Entre os campeões, apenas dois nasceram fora da França: o goleiro Mandanda, na República Democrática do Congo, e Umtiti, em Camarões. Na sua maioria, os demais são filhos de imigrantes —e nenhum deles pertence a famílias de refugiados.
Sugerir que são estrangeiros equivale a identificar a nação à “raça”, à cor da pele.
A mania nada tem de novo. Jean-Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional e pai da atual líder do partido ultranacionalista, acusou os vice-campeões mundiais de 2006 de não representarem a “França verdadeira”.
Na ocasião, o zagueiro Thuram deu-lhe a resposta precisa: “Le Pen deveria saber que, assim como existem negros franceses, existem loiros e morenos, e não são convocados para a seleção por sua cor, mas
por serem franceses”.
E concluiu reivindicando a “França verdadeira” da Revolução de 1789, em contraponto à “França eterna” da direita xenófoba. Agora, sua lição de história (e de política) deve ser ensinada à esquerda.
No fundo, a esquerda diz o mesmo que a direita, mas o faz com um sorriso no rosto. Para a direita, o “diferente” é o veneno que contamina a nação; para a esquerda, é o eterno estrangeiro, africano ou árabe, discriminado pela maléfica potência europeia.
+ Julio Hegedus: Bombas fiscais armadas para 2019
A seleção campeã de Mbappé e Pogba não serve para apagar as discriminações reais sofridas pelos imigrantes na França, nem absolve o governo francês de sua resistência a partilhar com a Alemanha a responsabilidade de dar abrigo ao fluxo de refugiados que cruzaram o Mediterrâneo. Mas também não deveria servir para, sob a cobertura do discurso anti-imperialista, reforçar a mitologia do sangue e da raça.
A França, ao contrário dos EUA, não coleta informações censitárias sobre a origem étnica de seus cidadãos. A “cegueira estatal” deita raízes na tradição de 1789: a cidadania é um contrato político, não um privilégio derivado da “raça” ou da religião.
Mesmo se não funciona como varinha mágica capaz de abolir o racismo ou a exclusão social, tal afirmação radical da igualdade política e jurídica é uma valiosa fronteira simbólica.
O comediante sul-africano Trevor Noah, que comanda o americano Daily Show, deu publicidade à charge de Rifai e qualificou os jogadores campeões como africanos. Numa carta aguda, o embaixador francês nos EUA retrucou que “isto legitima a ideologia que reclama a branquitude como definição exclusiva da
identidade francesa”.
A seleção brasileira campeã sul-americana de 1919 tinha ao menos cinco titulares oriundos de famílias de imigrantes, entre os quais o craque Arthur Friedenreich, neto de um alemão e filho de uma professora
primária negra.
Na época, a esquerda era universalista e não lhe ocorriam as ideias racialistas de qualificar o atacante como “alemão” ou “africano”.
A esquerda mudou, para pior. Hoje, integra o coral da “nação do sangue”, compartilhando com a direita uma esquina suja que leva os nomes alternativos de “anti-imperialismo” ou “antiglobalismo”.
Le Pen pode descansar. Três Copas depois, a esquerda fala por ele.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 21/07/2018