O relevante choque externo que vem bafejando o Brasil desde o início da última década é responsável por vários efeitos favoráveis sobre nossa economia, a menos da breve interrupção associada à crise do subprime americano. Para começar, o comum era se ter um choque ruim, não um bom. Outro ponto é que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Ou seja, alguns sairiam perdendo.
O Brasil estava preparado para responder numa certa medida, mas o grande negócio foi a forte subida da demanda externa, notadamente da China, pelas commodities que produzimos com larga vantagem. Tanto assim que o valor de nossas exportações explodiu nos últimos anos, puxadas basicamente pela subida de preços.
Enquanto o preço médio das importações subia 48% entre janeiro de 2006 e agosto de 2008, o das exportações subia bem mais: 69%. O ganho dos preços tem sido ainda maior após a crise. Os de exportação já estão acima do pico prévio no deslanche da crise.
Subindo os preços, aumentaram fortemente os lucros e o valor das ações das empresas na área de commodities de exportação. Aumenta, assim, a renda e a riqueza de agentes econômicos localizados no país, estimulando consumo e investimento. Em seguida, atrai-se mais investimento estrangeiro direcionado principalmente para o setor de commodities, o que reforça a capacidade futura de produzir sem pressões adicionais sobre preços e as contas externas. Maior ingresso de dólares tem levado ao aumento das reservas internacionais (a ponto de o governo brasileiro ter virado credor em relação ao setor externo), e, portanto, à redução do Risco-Brasil.
Outro efeito relevante foi o aumento das receitas públicas, mesmo com o fim da CPMF, não apenas pelo maior crescimento da economia, como pelo surgimento de novas bases de incidência de impostos. Num primeiro momento, isso permitiu maiores gastos sem pressões inflacionárias e redução da razão dívida pública/ PIB. Posteriormente, passaram a ocorrer excessos na área de gastos, pois, na crise, as receitas caíram significativamente, e o governo, pelo menos até o final do ano passado, vinha mantendo a mesma política expansionista do auge da crise.
Paralelamente, o menor crescimento relativo dos preços das importações induziu forte crescimento destas, ampliando a oferta interna de bens de consumo e de investimento, colaborando no combate à inflação e na ampliação da capacidade de produção da economia.
Por todos esses efeitos, e vencida a fase aguda da crise, a demanda agregada tem crescido muito expressivamente, a ponto de o PIB “teimar”em crescer perto do limite de rompimento da meta inflacionária. Mesmo aumentando o peso dos investimentos nos gastos, a pressão sobre a demanda tende, no curto prazo, a ser maior do que os ganhos do lado da oferta de bens e serviços. As pressões inflacionárias ocorrem principalmente no setor de serviços, sem concorrentes externos, pois nos demais existe forte competição do exterior, e mesmo na área de commodities a apreciação cambial amortece os choques externos de preços.
Nesse contexto, a apreciação real (isto é, descontada a inflação) da taxa de câmbio e a subida da taxa de juros Selic se tornam inevitáveis. Na falta de ajuste fiscal (que poderia reduzir as fortes pressões inflacionárias), ao final, quer se queira ou não, a taxa de juros terá de subir para trazer a inflação de volta à meta, e isso atrai mais capitais de fora, agravando os desequilíbrios. Enquanto a demanda externa continuar como está, e permanecermos minimamente organizados, a apreciação cambial terá vindo para ficar. É o reflexo natural de um grande ganho que o Brasil teve, e um desafio para nos reestruturarmos internamente. Nisso, o papel do governo não deve ser pequeno. Reduzamos os gastos ineficientes, reformemos o sistema tributário em busca de maior competitividade, e reduzamos o Custo-Brasil em geral, para minimizar os custos para os setores perdedores.
Mesmo tendo anunciado um corte orçamentário abaixo do necessário, o governo vem fazendo um genuíno esforço de ajuste fiscal “na boca do caixa” nestes primeiros meses. No primeiro trimestre, os dois itens de maior peso no gasto federal (previdência e pessoal) cresceram a taxas reais bem abaixo de toda a fase Lula. Só que sem ter por trás qualquer reforma estrutural para sustentação do ajuste, e com a vantagem de o salário mínimo ter subido apenas pela inflação (enquanto no ano que vem terá forte aumento real, pela regra em vigor). No caso da previdência, por exemplo, houve claro represamento de gastos com “sentenças judiciais”, gasto esse que tem crescido sistematicamente desde muito, e alcança valores anuais um pouco acima de R$ 7 bilhões. No primeiro trimestre, quando esse tipo de despesa se concentra, o gasto foi de R$ 4 bilhões em 2010. Já neste ano, foi de apenas R$ 700 milhões.
Uma reflexão, baseada nas avaliações acima, indica que é arriscado manter-se deitado no berço esplêndido do cenário favorável. A sorte que tem nos ajudado até aqui já anda no limite e a qualquer hora pode mudar.
Fonte: O Globo, 09/05/2011
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