O mundo parece ter entrado em um perigoso processo de recessão democrática nos últimos anos. Os avanços democráticos e constitucionais deflagrados pela Revolução dos Cravos, em 1974, seguida pela democratização espanhola, pela transição em diversos países da América Latina, entre os quais o Brasil, a queda do Muro de Berlim e o fim do regime do apartheid, na África do Sul, encontram-se em refluxo.
O cientista político Larry Diamond aponta como evidência dessa recessão a ruptura de pelo menos 25 regimes democráticos, desde os anos 2000, assim como uma acentuada deterioração das liberdades, da transparência e, em especial, a degradação do Estado de Direito, a partir de 2006, conforme mensuração realizada anualmente pela organização Freedom House.
Essa erosão dos valores constitucionais e democráticos não é um privilégio das novas democracias, mas também afeta as antigas, como França, Holanda, Itália, Inglaterra ou mesmo os Estados Unidos, onde a retórica da intransigência vem paulatinamente se institucionalizando. Por outro lado, regimes autoritários, como os da Rússia e especialmente China, apresentam-se cada vez mais robustos e com crescente influência ao redor do mundo.
Múltiplas são as hipóteses para explicar esse processo, que vão da incapacidade dos novos regimes democráticos para lidar com as demandas e conflitos de uma sociedade aberta, à eficiência de líderes autoritários para controlar a mídia e acuar a sociedade civil, passando pela captura das lideranças democráticas, em velhas e novas democracias, pela corrupção e pela fragilização das agências de aplicação da lei. O aumento da desigualdade, mesmo nos países desenvolvidos, potencializou a desconfiança na política, a tensão social, abrindo espaço para o oportunismo à la Trump.
No Brasil vivemos um processo paradoxal. Seguindo o caminho de muitas democracias em recessão, temos um problema de profunda ineficiência do Estado, que vem sendo incapaz de cumprir com as obrigações básicas no campo da segurança pública, educação, saúde ou infraestrutura urbana. Mesmo a onda de crescimento dos anos 2000 não foi capaz de reduzir a profunda e persistente desigualdade, esgarçando ainda mais o tecido social. As ruas de 2013 deixaram claro isso.
A promiscuidade do financiamento eleitoral e o vasto esquema de corrupção dela derivado, no entanto, apenas se tornaram mais evidentes em função do fortalecimento de mecanismos de transparência, monitoramento e aplicação da lei. Sem o surpreendente desempenho de algumas instituições de aplicação da lei, turbinadas pela delação premiada, não teríamos a exata dimensão da profundidade do modelo neopatrimonialista que vem se apropriando da democracia brasileira.
Nas últimas semanas, com a iminência da suspensão do sigilo sobre as delações, a luta pela sobrevivência dos operadores políticos desse regime neopatrimonialista tornou-se ainda mais dramática, fortalecendo uma inusitada aliança entre novos e antigos adversários políticos voltada a embaraçar ou desmoralizar o sistema de aplicação da lei. O desempenho de nossa democracia nos próximos anos depende, em boa medida, do resultado deste embate entre a elite política e a imparcialidade da lei.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 4 de março de 2017.
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