Para Viviane Mosé, o ensino no Brasil ainda é preso a uma estrutura do passado, que trata o aluno como um decorador de conteúdos. Ela ainda defende que, numa sociedade em que o acesso ao conhecimento foi democratizado em redes sociais, é preciso abandonar modelos de ensino em massa para priorizar a educação um a um.
Qual foi seu objetivo ao escrever o livro ‘“A escola e os desafios contemporâneos”?
Sou professora há 30 anos. Logo que entrei na universidade, já dava aula para professores de maternal e jardim de infância, sobre psicologia do desenvolvimento. Recentemente, visitei mais de 50 municípios, fazendo palestrar para professores em espaços que às vezes reuniam mais de mil deles para trocar ideias. Fiz uma série de programas sobre educação, que foi ao ar no Canal Futura, em que abordava questões como o que é educar, o que é aprender ou de que maneira incentivamos o ser humano a ter um tipo de cognição mais ampla. Esta abordagem combinou com minha linha de pesquisa na Filosofia, na qual eu faço uma crítica, que vem de Nietzsche, ao modelo lógico-racional de pensamento, à linearidade, por achar que ela produz exclusão social, por só aceitar o que é certo ou errado, o bem ou mal.
Hoje, vivemos numa sociedade globalizada, com novas estruturas de comunicação em rede. Este novo modelo de sociedade em rede abre perspectiva para um raciocínio complexo, que aceita contradição. Temos de fato a democratização do acesso aos conteúdos. Não apenas aos dados, mas ao raciocínio em tempo real. Antes, dizíamos que a internet havia permitido acesso aos dados, mas que isso não tinha nada a ver com conhecimento. Hoje, o que temos nas redes sociais é conhecimento produzido em tempo real. Para ter acesso a este conhecimento, o que você precisa é ser aceito por um grupo que esteja discutindo aquele tema de seu interesse. E conhecimento sempre foi sinônimo de poder.
Não é angustiante para um professor ter que se adaptar a esta nova sociedade, tão influenciada por novas tecnologias de comunicação sem ter conhecimento desas tecnologias?
Uma escola para ser contemporânea não precisa ter nenhum computador em sala. Temos de trabalhar com o raciocínio, e não com dados. Já temos um número de acesso à internet altíssimo, mesmo nas classes populares. Professores e alunos já fazem uso de tecnologia em casa, eles já acessam Facebook. Não é este o problema. A revolução da tecnologia é uma revolução da memória externa. O que o professor tem que entender é que decorar é inútil. Até então, precisávamos decorar para ter conteúdo. Mas, hoje, se você não lembra do conteúdo, você o acessa pelo celular. A internet é um lugar tanto perigoso como maravilhoso.
Temos hoje é que priorizar na educação a figura do pesquisador. O objetivo tem que ser, desde os 6 anos de idade, formar pesquisador. Desta maneira, estaremos dando a uma criança capacidade crítica para que ela faça os recortes corretos na rede. Se você mantém o modelo educacional em que o aluno é passivo, ele fica vítima desta rede. Nossa memória não é mais um banco de dados. Ela é uma memória viva, presente. Professor não ensina, é o aluno que aprende. Isso muda as relações de poder dentro da escola. A única possibilidade que temos para a educação é pensar no aluno pesquisador, capaz de desenvolver soluções para este mundo que desaba, que está em crise. Neste sentido, a crise é excepcional, pois precisamos de respostas que nos levem à transformação em uma sociedade mais justa e sustentável.
Não é demais esperar que o professor faça esta revolução em sala de aula tendo que seguir um currículo ainda ultrapassado?
Isso é um mito. Nas escolas brasileiras, na maioria dos municípios, não há currículo nem nunca houve. O que o professor geralmente faz é seguir ementas que um professor contratado há 30 anos criou. O professor diz que segue um currículo que, na prática, ninguém sabe o que é. Mas o fato é que o MEC [Ministério da Educação], há pelos menos 20 anos, tem uma postura muito mais aberta com relação ao currículo. É comum ouvir que é o ministério que não permite que os professores mudem, mas isso não é verdade.
Você em seu livro defende que as escolas tenham autonomia para definir o currículo. Mas, ao mesmo tempo, se as deixarmos totalmente livres para escolher o que será ensinado, poderemos negar a crianças o aprendizado de coisas básicas, que fazem parte do currículo mínimo, como ler e escrever bem, fazer contas…
O MEC hoje já tem os Parâmetros Curriculares Nacionais, que definem o mínimo a ser aplicado em todas as escolas. A autonomia não é 100%, claro. Mas meu ponto é que é possível encontrar uma maneria própria de lidar com estes parâmetros. Fora este mínimo comum, cada escola tem que discutir com a sua comunidade o que é prioritário para ela. Do contrário, vamos acabar trazendo não só médicos cubanos, mas também lideranças estrangeiras para assumir postos de comando no país. O principal problema das grandes empresas hoje não é em contratar funcionários pequenos. O problema é não ter quem ocupe sua presidência. Com esta educação que nos ensina a ser passivos, que precisa de apostilas para ensinar, não vamos formar empreendedores ou lideranças.
Ao final do ensino médio, no entanto, muitas escolas abandonam iniciativas pioneiras para preparar seus estudantes para a prova. Como fazer essa transição sem mudar o vestibular?
De fato, o vestibular é uma prova de conteúdo. Mas já temos o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é um exame que valoriza a competência e a habilidade. O vestibular ainda se fundamenta na memória. Na USP [Universidade de São Paulo], o aluno que passa é aquele que sabe o que ninguém sabe. Mas a revolução tecnológica elimina o vestibular porque não será mais possível este modelo de prova, já que será inviável controlar se um candidato está fazendo a prova com uma pulseira transparente que dá acesso à internet, por exemplo. As provas de seleção terão que admitir o uso destas tecnologias.
O Enem, criado para ser um modelo alternativo, não está virando justamente uma prova com aquilo que você tanto critica nos vestibulares?
Sim. Ele está perdendo suas características originais pelas pressões que vem sofrendo. Estão surgindo nos últimos anos questões que não correspondem ao que ele precisa. A sociedade tem que defender o Enem original, menos conteudista e mais voltado para a avaliação de habilidades e competências. Em vez de querer saber o que você aprendeu, o que precisamos é avaliar o que você sabe fazer com o que aprendeu.
Mas como fazer esta revolução toda sem mexer na formação do professor?
De fato, a universidade hoje é o que há de pior na educação brasileira, mas o curioso é que nós não a criticamos. O sistema universitário é horroroso, fragmentado, feito como uma linha de montagem com centros de saber separados uns dos outros. Temos uma instituição velha, que vive isolada e se recusa a ler o presente. Isso é muito grave. É da universidade que saem as pessoas que vão formar as pessoas.
Este modelo de escola que você propõe não seria algo mais artesanal, que pode funcionar muito bem num caso ou no outro, mas com poucos resultados quando se trata de uma educação de massa?
Acabou a educação de massa. Não temos nem mais meios de comunicação de massa. A pior coisa para a educação é um ensino de massa, com apostilas preparadas para um ser humano único. Temos que ter uma escola que incentive os alunos a descobrirem seus próprios talentos.
Mas temos mais de 30 milhões de alunos. Não é uma massa?
Não. Cada aluno estuda numa escola, numa comunidade, que tem que ter uma gestão autônoma. Aliás, temos hoje um problema sério de gestão da educação no país. Tanto por parte de gestores de políticas públicas, da dificuldade de interagir com várias instâncias municipais, estaduais e federais, como por parte da gestão de sala de aula.
Mas não coloco a culpa nos professores. A maioria deles está, sim, interessada em fazer mudanças. O problema é que temos uma estrutura herdada do regime militar, em que conteúdo chama-se disciplina, currículo é grade e avaliação é prova. Tiramos, por exemplo, Sociologia do currículo para incluir disciplinas técnicas. Como vamos querer que a população pense assim?
O nosso desafio hoje não é dar diploma, mas dar poder à população de saber. Não adianta a classe C botar roupa bonita e comprar carro, pois será excluída igualmente deste sistema. Interessa é que a pessoa pensa, elabora. O desafio da escola é ser um a um. O futuro da educação é um a um, é a escola respeitar um a um.
Temos que acreditar na nossa juventude como criadora de conteúdo, mas estamos ensinando ainda como um país submisso, que faz com que crianças se enquadrem numa estrutura que não é mais contemporânea. A nossa educação é castradora, está sempre cortando a cabeça dos líderes e inteligentes. A nossa melhor educação elimina as nossas lideranças. Este é o problema.
Fonte: O Globo
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