*Por Anna Luiza Guerzet/Líderes do Amanhã
A polêmica atual que emergiu nas redes sociais evolve o recebimento de verbas públicas por parte de artistas para realização de shows em diversos locais do Brasil. Tudo começou com o cantor sertanejo Zé Neto, que teceu críticas à cantora Anitta em seu show, e afirmou não depender de Lei Rouanet, pois quem paga o seu cachê é o povo. Rapidamente, a declaração reverberou na internet, ante a constatação de que todos os anos os Municípios promovem shows em cidades brasileiras bancadas por dinheiro público, tendo o próprio cantor, que iniciou a polêmica, recebido cachês fruto de verbas do governo.
A situação nos leva a uma série de reflexões, a saber: qual seria a diferença da Lei Rouanet para as verbas públicas pagas aos cantores por prefeituras municipais? É papel do Estado investir em cultura? Se sim, que tipo de cultura deve ser incentivada? Em meio às reflexões, uma hashtag entrou em trending topics no Twitter, #CPIdoSertanejo, com o objetivo de incitar investigações sobre o recebimento de verbas públicas por cantores sertanejos. Ainda não há Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada, mas o Ministério Público investiga situações similares em todo Brasil.
Inicialmente, é válido retomar a frase mencionada pelo cantor sertanejo, que diz não depender de Lei Rouanet, já que seu cachê é pago pelo povo. De fato, o cantor não estava equivocado: em shows públicos que acontecem em todo o Brasil, o cachê é custeado pelo povo, pagadores de impostos, que não tem o poder de escolha sobre a destinação da verba recolhida por tributação. Nesse modelo de contratação, as prefeituras escolhem o show que querem conduzir, contratam o artista de forma direta por inexigibilidade de licitação, que é um formato autorizado pela Constituição Federal em que se dispensa concorrência, sem limites de verbas além do orçamento do próprio Munícipio.
No Estado de Roraima, por exemplo, o cantor Gusttavo Lima foi contratado para apresentação em uma cidade com aproximadamente 8.300 habitantes de acordo com o IBGE. O valor do cachê foi R$ 800 mil reais, o que significa que, se a população da cidade tivesse que comprar ingressos para ver o show, cada pessoa precisaria desembolsar aproximadamente 100 reais. Será que todos os habitantes dessa pequena cidade estariam dispostos a destinar 100 reais para um show de algumas horas do cantor Gusttavo Lima? Em última análise, foi o que fez a Prefeitura de São Luiz (RO), ao custear o show do cantor com dinheiro público.
Em outra cidade brasileira, no sul da Bahia, a Justiça cancelou outro show de Gusttavo Lima, previsto para acontecer na última sexta-feira (3 de junho). O cantor receberia R$ 704 mil como cachê e o valor do evento alcançava R$ 2 milhões, valor muito próximos aos R$ 2,3 milhões recebidos da União pela Prefeitura local no final do ano de 2021, quando fortes chuvas acometeram o sul da Bahia. O fundamento da decisão foi a incompatibilidade entre a necessidade de recebimento de auxílio do governo federal em razão de catástrofe natural e a promoção de evento em valor similar, custeado com verba pública.
Toda essa polêmica naturalmente suscita dúvidas sobre outras formas de financiamento público de eventos culturais, como o caso da Lei Rouanet. A Lei em questão autoriza o patrocínio de eventos culturais por pessoas físicas e empresas, sendo o valor abatido do Imposto de Renda apurado pelo contribuinte. Ainda assim, é dinheiro público. Nesse modelo, a Secretaria de Cultura avalia o projeto, existe limite de gastos por parâmetros previamente definidos e o autor do projeto financiado precisa prestar contas dos valores recebidos como forma de incentivo.
Há quem reconheça como absurdo o pagamento de show de artistas por prefeituras locais, mas sustente a manutenção do incentivo governamental à cultura por meio de mecanismos como a Lei Rouanet, em que há a obrigação de prestação de contas. Para essas pessoas, o argumento é de que as prefeituras destinam verbas altíssimas, incompatíveis com seus orçamentos, por meio de contratação direta sem licitação e sem a obrigação de prestação de contas pelo artista contratado. Em paralelo, essas mesmas pessoas entendem como devido o incentivo cultural por parte do Estado, como forma de promover a indústria artística nacional e propiciar lazer a todos os cidadãos, uma vez que a Constituição lhes garante o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional.
No entanto, ainda que se verifique diferenças entre as formas de destinação de verbas públicas ao incentivo cultural, o resultado produzido é o mesmo: dinheiro dos pagadores de impostos sendo destinado para esse fim. Assim, a pergunta central da problemática travada parece mais ser: é papel do Estado investir em cultura? Esse tema, mais uma vez, perpassa por uma série de aspectos, sendo um deles a definição de quais são os direitos básicos que deve ou não o governo garantir.
Será cultura um deles? Se sim, que tipo de cultura? Viagens e aulas de música também estariam dentro do pacote de direitos básicos? Cada leitor terá sua própria definição de prioridades, o que demonstra o quão controverso é conferir ao Estado o poder de decidir o que é um direito básico e destinar verbas dos pagadores de impostos a situações que são julgados pertinentes pelo critério do avaliador.
Outro aspecto inerente ao questionamento sobre ser papel (ou não) do Estado investir em cultura é a definição de qual cultura merece ser incentivada. Shows sertanejos merecem mais incentivo público que outros estilos musicais, como funk? A exposição artística niilista, que por vezes não agrada em razão de um desprendimento ao belo, é também cultura que merece investimento?
Há quem acredite, ainda, que esse tipo de investimento em cultura só deve ser cogitado quando o governo conseguir assegurar saúde e educação de qualidade para toda a população. Portanto, sequer existe unidade de entendimento entre os próprios pagadores de impostos sobre quais são as prioridades para destinação da verba pública.
Independentemente do mecanismo utilizado para destinar verba pública a eventos culturais, seja a Lei Rouanet ou a contratação por inexigibilidade de licitação, o que há é dinheiro dos pagadores de impostos sendo utilizado para financiar eventos, de formas que estes podem, em muitos casos, não concordar. É possível que nem mesmo o fã de Gusttavo Lima morador de São Luiz (RO) concordaria em destinar, naquele momento, 100 reais de seu orçamento mensal ao show do artista. Mas o Estado o fez, sem consultar e sem pedir permissão.