O avanço no saneamento básico no Brasil, onde 100 milhões de pessoas não têm acesso à rede de coleta de esgotos e 35 milhões carecem de água tratada, segundo o Instituto Trata Brasil, encontra-se ameaçado por medidas que podem minar o Marco do Saneamento Básico, aprovado em julho de 2020.
O novo marco regulatório prometia impulsionar a modernização do setor por meio de licitações e concessões a empresas privadas, com o caso bem-sucedido da Cedae no Rio de Janeiro servindo de exemplo. Contudo, a assinatura de dois decretos pelo Presidente da República coloca em risco a participação da iniciativa privada e gera incertezas no setor.
Os decretos propostos pelo governo, baseados na solicitação da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), visam modificar dois dos principais dispositivos do Marco do Saneamento. Uma das alterações permitirá que as estatais estaduais prorroguem contratos com prefeituras, ignorando a Constituição, que estabelece a licitação como regra na administração pública. A outra, prorroga de 2021 para 2025 o prazo para que as empresas estatais provem que são capazes de fazer investimentos no setor. A estratégia do governo é contornar a legislação por meio de decretos, uma vez que é improvável haver clima para alterar o marco do saneamento tão pouco tempo depois de sua aprovação.
A aprovação do Marco do Saneamento promoveu a ampliação da participação da iniciativa privada no setor através de licitações, exigindo comprovação de capacidade econômico-financeira para realizar investimentos. Com a falta de recursos, muitas estatais não conseguem participar dos leilões, e por isso solicitam ao governo a inversão do processo. As empresas públicas buscam estender os contratos já existentes e obter prazos maiores para cumprir metas que, historicamente, não foram alcançadas. Além disso, pleiteiam acesso facilitado a financiamentos de bancos públicos para realizar obras que já deveriam ter sido executadas há décadas.
Os números demonstram a importância do marco do saneamento: para atingir as metas de cobertura de 99% da população com água potável e de 90% com esgoto até 2033, são necessários R$ 750 bilhões em investimentos, segundo a consultoria KPMG. Em contraste, o domínio histórico das estatais estaduais no setor resultou em apenas 84,2% de cobertura de água potável, 44,2% dos brasileiros sem acesso à rede de esgoto e somente 50,3% dos sistemas existentes com tratamento adequado. Os últimos dados são do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Em dois anos de vigência do marco, foram realizados 21 leilões, com investimentos estimados em R$ 82,6 bilhões em 244 municípios das Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, segundo a Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon Sindcon). Esses números ilustram o impacto positivo do marco do saneamento e a importância de manter a legislação atual. Contudo, o governo parece ignorar esses dados, insistindo em medidas que ameaçam reverter os avanços alcançados, potencialmente comprometendo a eficiência e a abrangência do saneamento básico no país.
O lobby pró-decretos de Lula é apoiado pelo PT, partido contrário ao Marco do Saneamento. Com os efeitos dos decretos, corre-se o risco de não alcançar as metas estabelecidas para 2033. A melhoria do saneamento básico seria capaz de provocar aumento no rendimento escolar das crianças e redução da pressão sobre o sistema público de saúde. No entanto, o governo, que se elegeu com o discurso de apoiar os mais pobres, parece preferir ressuscitar políticas obsoletas que punem quem mais precisa de melhorias em políticas públicas.
É crucial preservar a essência do marco, garantindo transparência, competição e investimentos privados em prol de uma vida mais digna para milhões de brasileiros. O desenvolvimento e a saúde do país estão intrinsecamente ligados a um saneamento básico eficiente e abrangente.