Combater o gasto de dinheiro público em práticas sem eficácia comprovada marcará o início do trabalho do primeiro instituto brasileiro dedicado à defesa da sociedade contra pseudociências, denominação que engloba tudo aquilo que se veste de científico embora fracasse em provar eficiência. São 29 casos, que vão da homeopatia a banhos inspirados em práticas dos homens das cavernas ao observar animais feridos e hoje pagas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Instituto Questão de Ciência (IQC) será lançado na quinta-feira, em São Paulo, e reúne integrantes da comunidade científica e dos hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, dos pró-reitores de pesquisa de USP, Unesp e Unicamp.
O IQC já nasce com o apoio de nomes reconhecidos como os médicos Paulo Saldiva (diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP) e Drauzio Varella, o químico Walter Colli e o reitor da Unicamp, Marcelo Knobel. À frente dele estarão a bióloga da USP e pós-doutora em microbiologia e genética molecular Natalia Pasternak Taschner, o diretor do Instituto de Física Teórica da Unesp Marcelo Yamashita, o jornalista e escritor de divulgação científica Carlos Orsi e o psicólogo e advogado Paulo Almeida, organizador do TEDxUSP.
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A meta inicial é convencer o governo a deixar de obrigar o SUS a pagar por 29 práticas alternativas, como imposição de mãos, dança circular e homeopatia. O IQC lançará um manual de informação sobre essas práticas com orientações de como detectar quando uma terapia não consegue cumprir aquilo o que promete. A inspiração são entidades dos EUA (Center for Inquiry) e Reino Unido (Sense about Science).
— Faltam recursos para diminuir as filas de atendimento de pacientes com câncer, doenças cardíacas e diabetes, ou para melhorar as emergências. Mas há dinheiro para pagar por métodos incapazes de provar que funcionam (essas práticas). Isso é socialmente injusto — condena Taschner. — Não se trata de proibir. O cidadão tem todo o direito de acreditar no que quiser. E se desejar gastar o próprio dinheiro para se tratar com pílulas inertes, pedrinhas, flores, que o faça. Mas não é justo que o contribuinte pague por isso. O dinheiro público, tão escasso, precisa ser usado com responsabilidade, com técnicas que comprovem sua eficácia, por meios passíveis de verificação.
O IQC terá ainda um Observatório da Pseudociência, um serviço público e gratuito de fact-checking científico. Vai analisar declarações de autoridades, celebridades, figuras públicas, anúncios publicitários e conteúdos jornalísticos. Gêmea siamesa das fake news, a fake science prolifera enraizada na falta de conhecimento. A comprovação científica tem princípios de fácil entendimento. Para provar que funciona, um método precisa que seus resultados e eficácia sejam mensuráveis e reproduzíveis. Alavancadas por propagandas de celebridades e promessas de cura daquilo que é incurável, muitas pessoas são iludidas.
— O ser humano tem uma propensão natural de procurar soluções fáceis e mágicas, sem danos e ação rápida — avalia Taschner. — Mas esse é o mundo dos milagres. Não o da vida real. O direito individual a essa busca não deve ser tolhido. Mas os governos precisam empregar os recursos que captam do cidadão de forma racional, pagar por resultados e não por crenças e promessas.
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O Reino Unido, no qual o SUS é inspirado, e a Austrália baniram do sistema público de saúde terapias alternativas e práticas que não conseguem comprovar eficácia, tais como homeopatia, cromoterapia e florais de Bach.
A Espanha lançou na semana passada um Plano Nacional de Proteção da Saúde contra pseudoterapias. O plano prevê a eliminação das práticas não comprovadas dos serviços de saúde e os estabelecimentos privados que os oferecerem não poderão se denominar centros de saúde. Em setembro, a Espanha pediu à União Europeia uma legislação mais dura contra a homeopatia.
O Brasil tem seguido na direção contrária. Há 12 anos o SUS paga pelas chamadas práticas integrativas. Em março deste ano o então ministro da Saúde, o engenheiro Ricardo Barros, anunciou a inclusão de mais dez práticas ao SUS e disse que o Brasil era líder na área, com 29 práticas integrativas oferecidas pelo SUS em 9.350 estabelecimentos em 3.173 municípios.
De fato, só o Brasil tem na lista das práticas pagas pelo poder público o uso de lama para facilitar o contato com o “Eu interior” (geoterapia), dança de roda (dança circular) e passes “para a transferência de energia vital (Qi, prana) por meio das mãos” (imposição de mãos), por exemplo.
O Brasil já financiou também pesquisas com a fosfoetanolamina, que fracassou ao ser testada em tratamento contra o câncer. O caso é emblemático, observa Taschner, porque os pacientes que recorreram a essa substância deixaram de receber terapias adequadas.
— Uma pessoa com câncer que deixa de se tratar com uma terapia testada e passa a recorrer a uma pseudocura perde chance real de melhorar. Mesmo que o procedimento em si não seja tóxico, estará lhe roubando tempo de tratamento contra uma doença em que cada dia faz diferença — destaca ela.
Fonte: “O Globo”