Os doutrinadores especializados em Direito Penal já identificaram vários movimentos de política criminal, como a “lei e ordem”, miscelânea de doutrinas que defendem maior rigor na aplicação da lei penal; o “abolicionismo”, que, no extremo oposto, defende a extinção de todo o sistema penal; e o famosíssimo “garantismo”, que pretende reduzir o Direito Penal e o Direito Processual Penal ao mínimo necessário para a proteção dos direitos individuais.
Identificamos, porém, no Brasil, um quarto movimento, tão ou mais poderoso que os anteriores: o movimento da “esquerda punitiva”. De forma bem resumida, podemos dizer que a ideologia esquerdista vê o mundo como um grande palco de luta de classes: Marx referia-se a burgueses contra proletários, com a vitória inevitável dos últimos. Porém, o marxismo moderno, cuja conseqüência cultural foi a ideologia do “politicamente correto”, ampliou essa luta para outras “classes”: homens contra mulheres, brancos contra negros, heterossexuais contra homossexuais, adultos contra idosos e crianças, “ricos” (conceito que, no Brasil, acaba por incluir a classe média) e pobres, etc. De acordo com essa ideologia, todas as medidas favoráveis às “classes dominadas” e contrárias às “classes dominantes” são justificadas em nome de um futuro “melhor e mais igualitário”.
Esse movimento tem diversas conseqüências, como a utilização cada vez mais arbitrária da polícia contra os “ricos e poderosos” (o fundamento dessas ações é o “igualitarismo na ilegalidade” – se os pobres não têm seus direitos garantidos, os “ricos” também não devem tê-los) e a incriminação da divergência, com leis e decisões judiciais que, a pretexto de preservar a imagem e a honra de pessoas e de grupos, contribuem para a restrição gradativa da liberdade de expressão (é significativo que o Brasil seja apenas o 84° País em liberdade de imprensa).
A mais nova manifestação desse movimento é a pretendida revisão da Lei de Anistia. A Lei 6.683/79 extinguiu a punibilidade de todos os crimes políticos e dos conexos a eles, desde que cometidos entre 1961 e 1979. Não foram anistiados aqueles já condenados por crimes de terrorismo, de assalto, de seqüestro e de atentado pessoal.
A idéia é possibilitar a condenação daqueles que realizaram torturas nos integrantes dos movimentos de esquerda. O fundamento da idéia é até bastante simpático: a tortura é um crime contra a humanidade e, por isso, imprescritível. O caráter absolutamente hediondo do crime e sua conseqüente imprescritibilidade seriam razões mais do que suficientes para retirá-lo do rol de crimes políticos e, portanto, da Lei de Anistia. Porém, abaixo dos belos ideais, esconde-se a idéia de desprezo ao Estado de Direito.
O argumento utilizado a favor dessa tese pode ser facilmente desmascarado por um estudante de Direito. Primeiramente, de fato, a tortura é um crime contra a humanidade, tal como definido no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI). Porém, vários outros crimes receberam também essa qualificação. Vejamos: “homicídio; extermínio; escravidão; deportação; aprisionamento com violação das normas do direito internacional; estupro, escravidão sexual, prostituição forçada, violência sexual; perseguição de grupos ou comunidades por motivos políticos, raciais, culturais, religiosos; desaparecimento forçado de uma ou mais pessoas; apartheid; atos inumanos que provocam graves sofrimentos”. De fato, os crimes da competência do TPI não prescrevem, ou seja, o processo nessa corte internacional é sempre possível. Interessante que, no Brasil, seja defendida a imprescritibilidade apenas do crime de tortura.
Até esse ponto, a argumentação é sustentável. O problema começa ao verificarmos que a Constituição Federal, norma fundamental que está acima de qualquer tratado internacional, considera imprescritíveis apenas os crimes de racismo e de ação de grupos armados contra o Estado. Tais exceções ao princípio da pescritibilidade estão previstas no art. 5° da CF, cláusula pétrea, que, como amplamente sabido, não pode ser modificada.
Apenas para argumentar, vamos supor que a tortura seja mesmo um crime imprescritível. Mesmo assim, não seria possível sua punição atualmente. O motivo chega a ser banal: a prescrição é apenas uma das causas de extinção da punibilidade. Mesmo que um crime seja imprescritível, ainda é possível que sua punição seja impossibilitada por outras causas, como a abolitio criminis (revogação do crime, ou seja, aquele tipo de crime deixa de ser previsto em lei), a graça, o indulto e a anistia, espécie de perdão concedido pelo Congresso Nacional. Assim, um crime imprescritível não será, necessariamente, sempre punível, pois é sempre possível que a extinção da punibilidade ocorra por outros meios.
Outro argumento corrente é o de que a tortura não é enquadrável nas hipóteses da Lei de Anistia, por não ser crime político ou crime conexo a político. Ora, tratando-se de uma norma penal benéfica, seus dispositivos devem ser interpretados extensivamente. Assim, crime político é aquele que tem por objetivo alterar o regime dominante no país (ditadura para democracia, capitalismo para socialismo, etc.) e, por simetria, aquele cometido para evitar que essa modificação ocorra, que é o caso da tortura.
Chama a atenção, também, uma ausência. Querem a punição dos militares que torturaram guerrilheiros, optantes da luta armada. Nada dizem a respeito desses mesmos guerrilheiros, que praticaram atos de terrorismo (explicitamente excluídos da Lei de Anistia), mataram e, inclusive, torturaram. Ora, a mais banal aplicação do princípio da igualdade requeriria que a Lei de Anistia fosse revista para todos e não apenas a favor daqueles que “venceram a guerra” e hoje estão no poder. Essa interpretação parcial dos fatos não é novidade: há tempos, os perseguidos pelo regime militar recebem vultosas indenizações. Aqueles que sofreram algum dano causado por esses “perseguidos” foram simplesmente ignorados.
Finalmente, mesmo se desconsiderarmos todas as ponderações anteriores, existe um “detalhe esquecido” pelos que querem a punição daqueles que praticaram torturas durante o regime militar. Tortura somente tornou-se crime no Brasil em 7 de abril de 1997, com a publicação da Lei 9.455/97. Assim, pleiteia-se que uma norma incriminadora tenha eficácia retroativa, atingindo fatos que ocorreram antes de sua entrada em vigor. Mais uma vez, quer-se desobedecer a uma cláusula pétrea, pois a CF apenas permite a retroatividade da lei penal mais benéfica ao réu ou ao condenado. Não há dúvida de que ninguém pode ser punido por fato que não era considerado crime à época em que foi cometido.
Portanto, é visível que a reivindicação de nova interpretação da Lei de Anistia, com o objetivo de excluir de seu campo a tortura, é simplesmente uma aberração do ponto de vista jurídico. Isso, porém, não importa para o movimento da esquerda punitiva, para o qual a ideologia é mais importante e mais defensável que o próprio Estado de Direito. Em decorrência, as pessoas que a defendem têm imunidade penal e podem, sem maiores problemas éticos, considerar legítima a vingança contra seus algozes de tempos passados. Porque, de fato, é disso que se trata: pura e simples vingança, envernizada por uma finíssima e falsa camada de elevados ideais humanitários.
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