Infeliz o homem que, podendo pensar, optou pela ignorância. Não que o pensamento seja uma fonte de felicidade, mas sem ele é impossível chegar à liberdade. O que mais impressiona é a prisão intelectual em que determinadas pessoas se colocam; entre um misto de prepotência e arrogância, como se titulares de algum conhecimento divino, acabam por cair na cilada da preguiça reflexiva, negando-se a rever preceitos e premissas mesmo quando diante de fatos inconvenientes. Aí, como manobra de sobrevivência, deslocam o foco para as arestas do problema, tentando esconder a incapacidade de respostas ou soluções eficazes.
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No meio jurídico, o fenômeno é recorrente. Certa vez, analisando complexa questão constitucional com graduado agente público, o recurso à fórmula pronta veio de imediato: “o Supremo, várias vezes, decidiu que não pode”. Diante da explicação inconvincente, fiz rápida pesquisa na internet, não encontrando decisões na linha do que estava sendo analisado; então, para espancar as dúvidas, foi solicitado o inteiro teor da decisão judicial. Após leitura detida, ficou claro que o STF não tinha se pronunciado sobre o problema posto, restringindo-se a questão antecedente ao amplo, plural e difuso campo de aplicação da norma.
Ora, os urgentes desafios brasileiros impõem uma forma de pensar aberta, propositiva e abrangente. Incompreensivelmente, muitos daqueles que poderiam contribuir positivamente no processo de otimização constitucional preferem a redoma estática que pouco ou nada faz, refugiando-se em esferas de pomposa autoridade, um absolutismo incompetente. Com a maestria que lhe é peculiar, a sabedoria invulgar de J. J. Gomes Canotilho bem aponta que “a aproximação absolutista deixou de ter credibilidade científica. Ela é incorreta no plano da teoria da linguagem, é inaceitável como procedimento metódico e desrazoável no plano argumentativo”.
Sem cortinas, antes de rasas verdades absolutas, devemos ter a humildade intelectual de trilhar o caminho do possível, testando factíveis hipóteses inovadoras que levem a melhores resultados práticos. Todavia, lembrando provocativa advertência de Alfredo Augusto Becker, o pensamento jurídico “confundiu o impossível com o real”. E, assim, inúmeras irrealidades se tornaram possíveis no Brasil, forçando o desenvolvimento de uma dogmática torta que sirva de amparo para privilégios insustentáveis. Tudo, aliás, por força de lei…
Em tempo, direitos adquiridos não são nem podem ser injustiças perpétuas. Logo, não podemos mais seguir com esse absolutismo jurídico de pedestal que se nega a pensar a realidade brasileira, vivendo em um país no qual a própria Constituição desacredita aquilo que nela expressamente está escrito. E, quando violado em seus direitos mais fundamentais, o cidadão recorre a um Supremo Tribunal Federal que não mais dispõe de tempo para ouvi-lo, pois envolvido em uma série de questões políticas, embrulhadas em fantasias jurídicas, a envolver altos figurões da República.
A crise do sistema de Justiça não deixa de ser uma consequência do pensamento jurídico tacanho e ultrapassado que aplaude a abstração da lei, mas é surdo aos gritos de uma realidade que sofre. Infelizmente, em muitos núcleos de envergadura, o Direito está se tornando uma ciência sem consciência. Em voto histórico, o eminente ministro Eros Grau lançou letras inapagáveis ao realçar que o “significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos”.
No cair do sol, quem se pensa absoluto não passa de um finado ambulante e, por assim ser, incapaz de dar vida à Constituição diante dos graves e inéditos desafios políticos, econômicos e sociais da contemporaneidade. A tecnologia bate à porta, mas os dinossauros estão de headphones. Entre tristes cenas de irrealismo oficial, milhões de brasileiros vivem os dias como se não tivessem vivido.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 25/06/2021
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