Sem vacina e/ou medicação específica eficaz, e em cima de hospitais falidos, só restaria esperar que a contaminação em alta velocidade do coronavírus tivesse lugar, e, após 14 dias, a imunização automática ocorresse. Ao final de 3-4 meses o processo se encerraria, após um elevado excesso de demanda, mais mortes etc. Uma nova vacina viria depois e tudo se esqueceria.
Nesse caso básico para comparação, o PIB ficaria na mesma trajetória anterior, a exemplo do que teria ocorrido com a crise da gripe H1N1, há pouco concentrada no estado do Rio Grande do Sul. Lá, inclusive, teria havido mais mortos do que haverá agora no Brasil. A maior diferença seria a concentração num estado só (RS), algo que não ocorre hoje.
Em resumo, nesse caso inicial praticamente não haveria perda qualquer de PIB em relação à trajetória projetada previamente, a não ser muito sofrimento localizado, com uma concentração de casos e óbitos num período curto, a exemplo do que já ocorrera em epidemias análogas.
Nada obstante, para estimar o custo da crise atual para o país como um todo, que nos diferencia da média mundial apenas pelo clima (aqui, melhor) e pelo sistema de saúde (bem pior) de que dispomos, algo que a globalização pouco melhorou, a segunda hipótese envolve uma quarentena horizontal, solução de desespero final, como a que estamos aplicando, a exemplo da que se deu na antiga epidemia de varíola. O governo não pode comandar a ida dos funcionários privados para casa, mas pode decretar, por exemplo, que as escolas fechem, o que obriga as crianças, que são muito propensas a transmitir vírus respiratórios, a ficarem em casa. Adotam-se medidas de restrição dos movimentos e aglomerações, fechando escolas, transportes, fábricas, acabando com shows, congregações nas igrejas etc. Suaviza-se a curva dos casos, mantendo a mesma quantidade total, apenas para não ter de mandar doentes de volta para casa em momentos de pico.
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Com o coronavírus, as crianças e os adolescentes não têm sintomas. Assim, o vírus não causa problemas sérios nesses grupos, mas, como disse o dr. Osmar Terra, gestor da gripe do Rio Grande do Sul, tirá-los das escolas aumenta o risco de contágio com os avós e os pais que têm de voltar para casa para cuidar das crianças. Sem falar nas interações com a vizinhança de prédios residenciais. Assim, ao contrário do que se esperava, no Rio Grande do Sul, o fechamento das escolas aumentou o número de casos, em vez de diminuir. Ou seja, uma lástima que nem sempre o que se espera com as quarentenas generalizadas tende a acontecer. Só empurram o problema para a frente.
A área médica passa ao largo dos impactos da quarentena horizontal sobre a atividade econômica. Como qualquer leigo deve imaginar, quanto mais ampla e demorada ela for, maiores serão os seus impactos recessivos, primeiro do lado da oferta (comércio e fábricas fechando na marra) e, depois, do lado da demanda, quando a redução dos negócios, vendas etc. se traduzir em queda de demanda. Negócios — especialmente os pequenos, com menos fôlego — mandam funcionários embora e estes não conseguem se realocar facilmente.
Em contraste com as vantagens do “achatamento da curva” (ou postergação dos casos de coronavírus para diminuir a pressão sobre um sistema de saúde falido como o brasileiro), fala-se pouco no YouTube sobre o custo para a sociedade da quarentena horizontal, principal arma posta em prática em nosso país. Ou seja, trata-se da perda de PIB, deduzido o custo adicional dos serviços hospitalares (que a quarentena evitaria ao reduzir a demanda por esses serviços no curto prazo), e em comparação com as projeções que antes se faziam da medida mais abrangente da atividade econômica (ou da renda agregada de uma determinada economia). Nesse contexto, a matéria de ontem no UOL sobre o tema, puxada por declarações de economistas da ONU, é um ponto fora da curva.
Uma medida parcial e grosseira, mas ainda subestimadora desse impacto, poderia ser extraída do socorro financeiro total que a União acaba de anunciar como forma de compensar classes menos favorecidas da devastação que a quarentena causa em suas vidas. Chute por chute, prefiro imaginar um socorro máximo a 77 milhões de desvalidos já cadastrados durante três meses, na base R$ 1 mil por mês médios (tudo isso sendo o que imagino que acabará acontecendo), o que implicaria a transferência total de cerca de R$ 300 bilhões, nada menos que 4% do PIB estimado por mim para 2020. Isso é o piso do cálculo. Daí para bem pior.
De forma mais ampla, pelos melhores números oficiais disponíveis, deveríamos somar a projeção de crescimento do Ipea pós-crise, de -1,8%, com a projeção do Banco Central antes da crise (2,2%), ou seja, os mesmos 4%. De novo, esse número deve ser visto como uma subestimativa do efeito verdadeiro.
Para concluir, será que não se gastaria bem menos ampliando, arrumando e aumentando a eficiência do sistema de saúde? Sou da área financeira pública e afirmo: dinheiro não falta… faltam competência e vergonha.
Fonte: “Correio Braziliense”, 3/4/2020