O ex-presidente Lula deu ontem mais uma das inúmeras demonstrações que tem dado nos últimos anos de que não se preocupa em ser coerente nas suas opiniões desde que possa tirar algum proveito da palavra dita no momento político certo. Nisso, no timing político, ele parece imbatível, desde que não se levem em consideração valores republicanos como seriedade no debate, nem nos incomode a prática de distorcer as palavras do adversário para ganhar a discussão no tapetão ideológico.
Depois de tentar ridicularizar a preocupação do expresidente Fernando Henrique Cardoso com a nova classe média brasileira, transformando-a em abandono das classes populares, em reunião ontem com prefeitos do PT no estado de São Paulo o ex-presidente Lula defendeu que o partido busque alianças para as eleições municipais de 2012, incluindo nas suas chapas candidatos que atinjam setores da sociedade com os quais o PT tem dificuldades, como as classes médias e os empresários.
O exemplo de Lula foi seu ex-vice-presidente, José Alencar, a quem atribuiu importância capital na sua vitória de 2002 para a Presidência da República.
O diagnóstico de Lula está correto e corrobora a análise de Fernando Henrique. Os dois indicam o mesmo caminho para os partidos que lideram: a classe média ampliada deve decidir as próximas eleições municipais, especialmente diante de um quadro econômico adverso em que a inflação em alta e restrições de crédito podem afetar o sentimento de bem-estar que ela vem experimentando.
Na eleição municipal de 2004, o melhor ano em termos econômicos da administração Lula até aquele momento, isso não foi o suficiente. O governo perdeu as principais prefeituras do país, especialmente a de São Paulo, pois perdera o apoio da classe média de todo o país, atemorizada com o autoritarismo revelado por setores do governo e com o aparelhamento do Estado.
Além de todos esses problemas, há a questão da corrupção, que surgiu em meados de 2005 com o escândalo do mensalão.
De lá para cá, o desempenho sofrível do PT nas regiões Sul-Sudeste vem se mantendo inalterado, mostrando que ele continua a ter dificuldades na região mais rica e esclarecida do país.
Nada mais natural, portanto, que sua votação majoritária tenha migrado para o Nordeste.
O cientista político e ex-porta-voz de Lula, André Singer, professor da USP, fez um trabalho acadêmico que se tornou imprescindível na análise do fenômeno do lulismo, em que o define como um grupo conservador, composto pelos beneficiários dos programas assistencialistas do governo e pelo aumento do salário mínimo.
Esse grupo identifica o governo como o fiador da estabilidade econômica e vê nele a garantia de sua nova situação financeira, que teme perder se houver alguma mudança inesperada.
Esse conservadorismo pode favorecer o governo, mas pode também afastálos do governo se pressentir guinadas para a esquerda, por exemplo.
Essa análise do eleitorado brasileiro, e a necessidade de buscar uma conexão com esse grupo de cidadãos que hoje representa a maioria da população brasileira, é a mesma feita pelo ex-presidente Fernando Henrique, e fazer a ilação de que os tucanos são elitistas enquanto os petistas são os defensores do “povão” é apenas mais um embate político em que, por sinal, os petistas se saíram melhor até o momento porque os tucanos temem a imagem de elitistas.
Na análise petista, a nova classe média ainda está formando sua identidade sociocultural e por isso precisa ser acompanhada de per to. Entre 2003 e 2008, segundo dados do Centro de Pesquisas Sociais do Ibre, da Fundação Getulio Vargas do Rio, 31,9 milhões de pessoas ascenderam às classes ABC.
Essa “nova classe média”, suas aspirações e, sobretudo, sua capacidade de ser um “agente fundamental” em uma revisão de valores da sociedade brasileira são analisadas pelos cientistas políticos Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, no livro “A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade”, da editora Campus com o apoio da Confederação Nacional da Indústria (CNI), de que já tratei aqui na coluna. Vale a pena voltar a suas análises.
O fato de a mobilidade social dessas classes ter dependido amplamente do consumo, e não de novos padrões de organização ou desempenho na produção, demonstra a fragilidade dessa ascensão e justifica a incerteza que esses novos eleitores têm diante do quadro político.
Eles valorizam especialmente a educação, e os autores identificaram “um sentimento surpreendentemente generalizado” de insatisfação com a qualidade da educação.
A nova classe média, no entanto, considera a violência, a corrupção e as drogas como problemas mais graves que as carências referentes à saúde, ao desemprego, à habitação e à qualidade da educação.
Os cientistas políticos Amaury de Souza e Bolívar Lamounier constatam no livro que a classe média inclina-se pela democracia como a melhor forma de governo, “mas partilha com os demais segmentos da sociedade um sentimento de aversão à política”.
Em grande parte, esse sentimento deriva da percepção de que a corrupção campeia no mundo da política, mas as pesquisas mostram que é também amplamente disseminada a sensação de que “os políticos e os partidos não se importam com a opinião dos eleitores”.
É esse o eleitor do qual PT e PSDB estão atrás, assim como os partidos que disputam a centro-direita política, como o DEM e o futuro PSD.
Fonte: O Globo, 20/04/2011
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