Poderíamos continuar até chegar a uma paternidade cósmica e fundadora. A Adão ou ao Pai Criador que inventou a luz num mundo de trevas e dividiu os seres divinos dos mortais. O universo tem buracos negros e, como todos nós, está em pleno desequilíbrio.
Agora, o que realmente envergonha é o Supremo Tribunal Federal. Por meio de um presidente cuja biografia revela uma certa aversão a conflitos de interesses, reinventar numa canetada monocrática a censura num Brasil que exige liberdade com igualdade.
Como a gravidez, a liberdade é imune ao mais ou menos. Qualificá-la, excluindo os membros do Supremo (como foi feito com os militares), é recriar um abusivo “Você sabe com quem está falando?”, cujo estudo sociológico eu realizei há 40 anos.
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A censura tem tudo a ver com a reintrodução do favorecimento devido aos membros do nosso grupo, partido, classe ou categoria. É um traço estrutural das sociedades relacionais nas quais a igualdade é relativizada por hierarquias de muitos matizes. No caso do Brasil temos, significativamente, um documento original: a Carta de Caminha. No seu finalzinho, surge um pedido de favor dos que são capazes de falar abertamente (ou como amigos) com o soberano. O acesso ao Supremo é um privilégio vedado aos comuns:
“E nessa maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, me levou pelo miúdo. (…) Vossa Alteza há de ser muito bem servida por mim. A Ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé, a Jorge de Osório, meu genro, o que dela receberei em muita mercê ( = com muito gosto).
Pero Vaz de Caminha, 1.º de maio de 1500”.
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Os elos de amizade surgem igualmente com um Manuel Bandeira desejoso de ir embora pra Pasárgada onde seria amigo do Rei e teria mulher em cama escolhida. Igualzinho a um Brasil a ser transformado.
Saliento que no mesmo poema a amizade é complementada pelos elos do parentesco, pois em Pasárgada, “a existência é uma aventura de tal modo inconsequente que Joana a Louca de Espanha, rainha e falsa demente, vem a ser contraparente da nora que nunca tive”.
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Fui um dos poucos, senão o único, a tentar um entendimento sociológico da amizade no plano do poder à brasileira. Amizade de um lado; parentesco e herança de sangue ou casamento do outro. Os genros dos genros são exemplares tal como os cunhados e sobrinhos cuja não nomeação para um cargo público pode levar ao divórcio se o marido virar presidente de Pasárgada. Não vou falar dos filhos ou de uma eventual filha superpoderosa porque isso iria me levar para a história.
Tanto a consanguinidade quanto a afinidade são rotineiras no caso dos empenhos políticos nacionais. A questão surge quando a democracia imanente ao regime republicano introduz o requerimento do mérito e da impessoalidade, que eliminam a amizade, a filiação e o nome de família. Se o sangue (sobretudo o azul da cor do céu) é o traço distintivo das aristocracias que foram o nosso apanágio até o finalzinho do século 19, quando (com o fim legal da escravidão) mudamos – como estamos tristemente testemunhando – na forma, mas não num renitente conteúdo. Pois o peso moral do parentesco (baseado na herança e na ideologia fundacional das origens) e das amizades (que replicam o mesmo modelo) continuam a operar, bloqueando os critérios impessoais – de fora das “casas”.
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O amigo do rei tem a mulher que quer na cama que escolhe; a amante do imperador virava marquesa, o genro do genro é eleito governador. E o amigo do amigo do meu pai, promovia negócios.
Num trabalho antigo, expus os axiomas da amizade no Brasil. Ei-las:
a. Amigo de amigo é amigo.
b. Inimigo de amigo é inimigo.
c. Mulher de amigo é homem.
d. Lei, cadeia, má-fé, não reconhecimento e negação da realidade aos inimigos; aos amigos, tudo!
e. Tenho a coragem para tudo, menos a de negar um pedido de amigo.
Fonte: “Estadão”, 24/04/2019