Foi na saída do elevador de um hotel em Nova York que minha avó, perto de completar 90 anos, me puxou pelo braço como se quisesse ter papo sério:
– Depois de andar pelas ruas modernas daqui, me lembrei que há muito tempo estou com uma dúvida que gostaria de te perguntar.
– Hum.. diga.
– Laptop e WhatsApp são a mesma coisa?
Sem saber o que dizer, respondi apenas com um não, sinal para mudarmos de assunto. Minha avó continuou:
– E isso muda alguma coisa pra mim?
– Acho que não, vó. Continua tudo igual pra você.
– Então, tá bom.
A conversa revela posição de alguém que, diante do intenso ciclo de transformações do mundo, em algum momento, perdeu o fio da meada e já não consegue diferenciar o aplicativo mais popular do Brasil de um computador portátil.
O impacto dos avanços tecnológicos na vida cotidiana é enorme e se capilariza nas ações cotidianas mais simples. Para chamar um táxi com desconto, é preciso entender como funcionam os aplicativos, os smartphones, a contratação dos pacotes de internet, as faturas de cartão de crédito etc. E se, por acaso, perdermos um pedaço dessa história, vai ficando cada vez mais difícil entender o mundo em que vivemos. Aconteceu com a minha avó e pode acontecer com qualquer um. Parece que é preciso saber de tudo sempre.
Não é à toa que os festivais de tecnologia e inovação crescem em ritmo exponencial. O South by Southwest (SXSW) é um bom exemplo. Criado em 1987, em Austin, no Texas, por um jornalista do Austin Chronicle, todos os anos, o evento reúne profissionais de diversas áreas dispostos a compartilhar ideias e aprender sobre as principais inovações do mundo.
No primeiro ano, o evento contou com 700 participantes. Hoje, são mais de 100 mil de 102 países. Durante o festival, Austin se transforma na capital internacional da inovação. Pelas ruas, há uma multidão temerosa por não acompanhar o desenrolar da história. “É preciso estar atento”, dizem. Eu completo lembrando uma música de Caetano Veloso: “É preciso estar atento e forte”.
Isso porque na mesma medida que tomamos conhecimento das novas tecnologias e as inserimos na resolução dos nossos dilemas cotidianos, o uso rotineiro cria outros problemas com tamanho e valores distintos. E mais, cobram da sociedade e das autoridades discussão plena sobre os limites, os usos e a criação de uma regulamentação. Isto é, seguimos resolvendo uma série de tensões do presente e criando outras que impactarão fortemente nossas vidas no futuro.
Até agora, parece que o South by Southwest de 2019 apresenta mais aflições do que novidades. Neste ano, não foi lançada nenhuma nova empresa com a promessa de mudar o mundo tal como fizeram, anos atrás, os fundadores de Twitter, Foursquare e outros. A grande agonia por aqui é compreender o impacto das novas tecnologias na vida das pessoas.
As empresas de tecnologia continuam vindo ao evento contar as novas particularidades de seus produtos, mas permanecem mudas sobre o impacto das suas invenções. Já sabemos e ouvimos novamente que os algoritmos, a inteligência artificial, o blockchain, a mineração dos dados, o comando de voz, o reconhecimento facial e corporal são uma realidade, mas ninguém ainda sabe o que será de nós depois disso tudo.
As melhores palestras SXSW de 2019 são as lideradas pelos “troublemakers” (“encrenqueiros”, “criadores de caso”, em tradução para o português): pensadores dispostos a enfrentar o fascínio do novo e a refletir sobre o impacto das novas tecnologias em nossas vidas.
Foi importante ouvir Alex Rosenblat, antropóloga, falando sobre sua pesquisa com os motoristas do Uber e suas reflexões sobre os efeitos dos algoritmos sobre as relações de trabalho. Foi essencial escutar Ammy Weeb, futurista, explicando como a privacidade acabou depois que a maioria das relações passaram a ser mediadas por plataformas digitais que dominaram as interações cotidianas. Foi significativo testemunhar Roger McNamee, investidor do Vale do Silício, expondo os danos que o Facebook traz para a fomentação de crises políticas e culturais.
Tudo leva a crer que o próximo ano será mais de reflexão e diálogo sobre os limites da tecnologia do que sobre novidades. E não serei eu o primeiro a recusar esse debate.
Se por acaso minha avó voltar a me perguntar se a diferença entre um laptop e WhatsApp muda alguma coisa na vida dela, já sei a resposta:
– Vó. Isso muda muito a vida de todo mundo. Vou tentar te explicar.
Fonte: “UOL/TAB”, 13/03/2019