Que Estado, Governo e Administração são coisas distintas, parece mais ou menos evidente. Não fosse assim teriam o mesmo nome, não é verdade? Em todo caso, vamos explicitar um pouco isso. O Estado nacional moderno é uma instituição politicamente organizada, com povo e território, que possui soberania reconhecida interna e externamente e se rege por uma Constituição. Sobre o conceito de governo existem incontáveis divergências entre os autores, mas em resumo podemos afirmar que governo é uma função intermediária, própria do Estado Moderno, que se caracteriza pela definição das políticas públicas. Na dimensão que mais nos interessa aqui, governo é o grupo que cumpre essa tarefa. Administração, por seu turno, é o corpo funcional dos quadros do Estado que tem a seu encargo dar efetividade às políticas públicas. Ufa! Chega de teoria que isso, como diria Lula, dá uma canseira danada.
Do que ficou acima, transparece, entre outras coisas, que o Estado e a Administração são permanentes, ao passo que o governo é transitório. Portanto, confundir esses três elementos é erro descomunal. E fazer com que as três funções sejam assumidas pela única dentre elas que é transitória, constitui equívoco ainda maior. Pois saiba, leitor, que é isso o que acontece no Brasil, desde a proclamação da República. O presidente é chefe do Estado, do Governo e da Administração.
O sujeito, em tese, assume por quatro anos e tem a caneta mais pesada do mundo. Ele não só pode aparelhar o Estado e a Administração segundo conveniências pessoais ou partidárias, como faz isso mesmo, de modo sistemático, sem qualquer constrangimento legal, porque, de fato, tudo está sob o manto vermelho de seu poder czarista.
Dificilmente transcorre um dia sem que transpareçam evidências do que afirmo. A demissão de Lina Vieira da chefia da Receita Federal desencadeou o efeito dominó de inúmeras outras demissões. Os titulares desses postos, assim procedendo, estavam expressando discordância com o aparelhamento político-partidário daquela instituição do Estado. Ou não? Outro exemplo da semana. A sobrecarregada pauta do STF trouxe novamente às primeiras páginas o episódio do caseiro Francelino e a quebra de seu sigilo bancário. Por mais que os advogados dos acusados e quatro ministros esgrimissem argumentos sobre a insuficiência de provas, até a Raika (cadela do meu neto) sabe: a) quem esperava obter benefício do delito cometido e, e b) quem, se não deu a ordem para o delito ser praticado, omitiu-se em agir contra os que lhe colocaram nas poderosas mãos a evidência do delito. A invasão da privacidade do Francelino resultou do aparelhamento da Administração. O resultado no STF resultou do aparelhamento do Estado.
Nem mesmo países com cultura política superior se expõem aos riscos de tamanha concentração de poder (ou será que esses países alcançaram cultura política superior porque não se expõem a tais riscos?). Neles, quando ocorre troca de governo, vagam umas poucas dezenas de cargos. Aqui dezenas de milhares! Dezenas de milhares de militantes partidários são inseridos nos postos de mando da administração pública, aparelhando toda a administração para colocá-la em harmonia com interesses político-partidários e eleitorais. Como decorrência dessa organização vigarista do Estado, perde a sociedade, perde o Estado, perde a Administração e se desacreditam os governos, a política e a democracia.
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